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Crônica da Desconfiança
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Crônica da Desconfiança


Desde o dia em que Dona Zefa da Luz desconfiou, nunca mais teve sossego. Não que ela tivesse algum motivo forte, alguma pista; mas por uma sucessão de detalhes que a qualquer outra passariam despercebidos.


O seu marido passara a mudar o pijama toda semana, precisamente às quartas-feiras – antes só o trocava quando a mulher ameaçava não deixá-lo mais entrar em casa. O pacote de brilhantina voltou a frequentar a velha cômoda, depois de quase duas décadas esquecido. Também algumas roupas e as sandálias franciscanas foram desentocadas do guarda-roupas e postas ao sol para tirar o cheiro forte de naftalina. Além disso, ele – que quase nunca saía, sempre deitado numa rede no fundo de um quarto escuro ou perdido entre as roseiras do jardim, com um rádio de pilha nas mãos –, de uma hora para outra, deu para escapulir pelas esquinas, ir demais à padaria e aos botecos.


De início Dona Zefa sondava através de arrodeios e conversas perdidas, procurando uma falha. Depois passou a vigiar-lhe o sono e ver se ele falava alguma coisa compreensível em meio àquele emaranhado de palavras vazias. Por fim, perdeu a paciência e foi direto ao assunto: perguntou, exasperou-se e ameaçou ceninhas de ciúmes se não soubesse o que se passava. Nada, o marido ficava mais esquivo e continuava a sair, agora usando o genro como desculpa.


Quando Dona Zefa resolveu agir já fazia três anos das mudanças íntimas, de barbeado todo dia, da loção de alfazema para dormir, dos suspiros nas tardes longas; tudo isso bem vigiado pela mulher. Primeiro conversou com as filhas, que a acalmaram dizendo que talvez fosse a caduquice chegando; depois consultou as vizinhas e comadres, que já tinham percebido e cada uma tinha uma opinião. Dona Luíza achava que os amigos de outrora era quem o estavam influenciando; Dona Mazé só desconfiava daquele zelo todo; mas comadre Verônica foi quem tinha certeza de que era mulher na vida dele, podia ir atrás; fosse, que não se arrependeria. Por fim, disse ter ouvido falar no rádio em um detetive particular, infalível nesses casos, era só escutar o programa da tarde, anotar o telefone e agir. Fosse sem demora, senão seria tarde.


O tempo passava e ela não se decidia, tinha medo, tergiversava quando as amigas davam conselhos. Um dia, em segredo, ouviu o rádio a tarde toda, anotou o telefone e ligou: o detetive, respeitosamente, pediu que lhe fizesse uma visita em seu escritório, sem compromisso, para obter mais detalhes antes de agir, viesse mesmo, haveria desconto e sigilo profissional.


Depois de voltar várias vezes da porta do escritório, ela resolveu entrar: conversou timidamente sem levantar a vista, pediu por amor de Deus que ele não falasse para ninguém, se despediu trêmula e desapareceu entre as árvores da praça em frente. Após um mês e meio de investigação, o detetive chamou Dona Zefa, acalmou-a com um copo de água e açúcar, teceu os pormenores de seu trabalho e concluiu com ares de preocupação: – Seu marido está frequentando um motel todas as quintas-feiras, vai no carro do seu próprio genro. Mas... em todos esses anos, nenhum porteiro, nenhum vagabundo que vagueia pelas imediações, dá notícia de mulher alguma... ele entra só.


E após muito bate-boca – o detetive querendo ir adiante, Dona Zefa querendo recuar, as vizinhas e comadres a incentivando a continuar – resolveram armar um flagrante. Planejaram, distribuíram gorjetas para os porteiros do motel, com uma discritude de missa de sétimo dia. Numa quinta-feira à tarde seguiram, o detetive à frente com uma máquina fotográfica, Dona Zefa (entre furiosa e atônita) e comadre Verônica como testemunha escolhida pelas vizinhas e comadres.


Quando o porteiro abriu a porta e o trio adentrou apressado o quarto de motel, ninguém entendeu a solidão desprotegida do velho Antônio da Luz. Ele puxou para cima de si o lençol, cobrindo a nudez completa, e gritou com os olhos esbugalhados que pelo amor de Deus, ele não traía a mulher. Só depois de minutos de hesitação e tremedeira foi que o detetive arrancou com força o lençol de cima dos dois volumes trêmulos, deixando todos atônitos com a cena: O velho jazia parado, ao lado uma enorme boneca de plástico, daquelas infláveis.


Do desenlace só resta uma mínima parte das aposentadorias dos dois velhos – a maior parcela ficou com o detetive – e a vergonha irada de Dona Zefinha, que segredou, humilhada, às comadres, que preferiria que seu marido a tivesse traído com uma mulher de carne e osso do que com aquele monte de plástico.


*A crônica Desconfiança foi recentemente publicada na Bulgária pelo tradutor
Rumen Stoyanov.

Foto do Pedro Salgueiro

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