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Digressões
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Digressões


Abro o jornal e está lá. Corpos nus de um lado e anúncios de missas do outro, numa mútua tentação. Penso na conveniência de ler a própria sorte nesses extremos, a meio caminho da carne e da santidade, tendo de escolher entre um e outro ou, o que é pior, indo de um a outro apenas deslizando a página.

 

O horóscopo não está animador. Leio a previsão de outro signo. Parece boa. Por um momento, finjo que não sou de junho, mas de fevereiro ou agosto. Gosto dos prognósticos. E se, por engano ou deliberado esforço, passasse a viver como um capricorniano ou um pisciano e não como um geminiano?

 

Uma amiga que mora em São Paulo fala do céu de Fortaleza. Nunca tinha visto nada tão azul. Lá, acostumou-se às gradações do cinza, ora mais claro, ora mais escuro, mas nunca esse tom especial de azul-turquesa quase transbordando para o verde.

 

Como se o excesso da cor resultasse numa cor diferente, o mar naquele trecho da praia também é cambiante. De manhã bem cedo, está mais para o verde. Ao meio-dia, é reflexivo, e ninguém que o olhe de muito perto poderá determinar com exatidão a tonalidade de sua massa aquosa. À tarde, porém, torna-se azulado, quase manso, talvez por influência da mornidão do dia, talvez porque o sol já coado abrande um pouco as regras.

 

A mãe de um colega costumava dizer que, pra descansar o juízo, basta erguer a vista e arregalar os olhos, permitindo que uma vastidão de luminosidade avance retina adentro. Óbvio que não era verdade, e o volume de cor maltratava a vista, fazendo-a nadar nesse choro involuntário que as crianças experimentam em algum momento da vida.

 

Acendo um cigarro na janela do banheiro. Vejo o fiapo de nuvem alvacenta que vai cambaleando como um desses montes de palha que atravessam a única rua de uma cidade deserta nos momentos que precedem uma explosão ou uma morte. Leva sete segundos para cruzar a largura do quadrilátero aberto na parede - uma medianera, como no filme. Um chumaço branco à deriva solto nessa piscina sem bordas que é a parte de cima da vida.

 

Em breve os profetas da chuva devem se pôr de sentinelas no terreiro de casa à procura dos vestígios - do quê? Da temporada, do novo ano, da água. Ignoram as nuvens. Não são confiáveis. Caçam sinais no que é permanente. A marcha ancestral das formigas, os ninhos dos pássaros, a arquitetura do cupinzeiro.

 

Mudei os móveis do quarto de lugar. Também alterei a ordem das lombadas de livros, agora enfileirados segundo critério nenhum,. Nomes de autores misturados aos de autoras, obras de ficção ladeadas por ensaios históricos, poemas lúbricos acasalados com prosas mais secas.

 

Na volta pra casa, dois jovens se abraçam na parada de ônibus. Enlaçados como ginasianos recém-fisgados, cumprem o ritual tão conhecido do noviciado da paixão, como escreve HH. Pernas e braços enovelados, mãos brincantes saltando do lóbulo da orelha para a nuca de lá ao miolo da roupa. As mochilas atiradas a um canto feito objetos esquecidos num quarto. Acenam juntos ao ônibus que chega, mas quem irá subir? Quem fica? Quem vai? Passo de carro sem tempo suficiente para reparar em mais nada.

 

Foto do Henrique Araújo

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