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Um livro sobre o pai
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Um livro sobre o pai


Há dias escrevo sobre o pai. Paro e releio. Agora mantenho distância, faço que não estive durante uma semana espremendo trinta anos numas páginas em branco, empurrando a vida folha adentro como se forçasse o pé a caber no aperto do sapato bico-fino.

 

O pai não sabe, o pai nunca sabe. Releio mais uma vez. Estou agoniado, pesco um trecho que me parece excessivamente ruim, escrito numa língua que não sei qual é. Outro é muito triste. Não quero escrever um livro triste, digo a mim mesmo. Mas talvez só possa escrever algo assim.

 

Ontem falei com a filha no telefone. Dois ou três minutos. Depois ela pediu pra desligar. Estava cansada de falar, pediu pra ver desenho antes de dormir.

 

Chorei. Ela não sabe. O pai também não. Ninguém, na verdade, exceto a vida que faço caber num punhado de areia cuja métrica aprendi a chamar de caracteres - esses símbolos pequenos que enfileiro lado a lado a fim de dizer qualquer coisa sobre o tempo remoto. E com eles descubro que o passado é sempre presente.

 

Choro ao telefone num cômodo escuro do trabalho, e o que se segue é um arrazoado sobre o pai mais uma vez.

 

Então hoje desejei expurgar uns milhares desses caracteres novamente. Voltei ao livro do pai. Mas o livro do pai é meu, e é um livro triste. O pai não é triste. E tristeza não é defeito, disse a vó certa vez. Eu tinha uns poucos anos na época, 25 ou 27, não lembro exatamente. Já entendia àquela altura que em algum momento precisaria fazer o caminho de volta pra entender o que ela falava.

 

Nesse livro as histórias que pretendo contar nunca são as histórias que conto de fato, mas apenas as histórias que eu contaria se resolvesse contá-las em algum momento. Que é o que estou fazendo agora. É um paradoxo "duraniano", um jeito de ir tocando as coisas por suas margens até alcançar o miolo.

 

O miolo da vida e das pessoas é sempre muito frágil e difícil de encontrar. Assim como o miolo dessas histórias que tinha a intenção de recuperar por meio da letra tortuosa e fazê-las de novo minhas numa página que vou percorrendo devagar feito o caminho da escola.

 

E então essas histórias, não importa se as desejasse ou não, se convertem em outras, que agora são as da mãe e as dos irmãos e de todo mundo que brincou num quintal muito antigo da memória.

 

São estas últimas que me surpreendem. Histórias inesperadas. Chegam de onde achei que não viria mais nada, ganham sombras e projetam silhuetas desaparecidas contra as paredes já comidas do tempo.

 

As histórias que contamos de fato são quase sempre histórias de fantasmas. Como assombrações, pessoas desaparecidas de repente ressurgem, gestos congelados se desfazem e completam, ruídos que atravessam corredores no meio da noite encontram um destinatário. Cheiros. Sorrisos. Algaravias.

 

É o que tenho aprendido escrevendo nas últimas semanas em procura de um fio que deixei soltar ainda muito jovem.

 

Que um livro, ainda que sobre uma árvore ou um homem trancado num apartamento ou mesmo uma conversa no fim da tarde, é e não é um livro sobre o pai.

 

Porque qualquer livro que escreva agora será sobre ele, e nenhum efetivamente será.

 

Foto do Henrique Araújo

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