Logo O POVO+
O Brasil virou um grupo de Whatsapp
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O Brasil virou um grupo de Whatsapp


Estamos no segundo turno, e agora? A boa notícia é que temos três semanas pela frente pra discutir incessantemente com amigos, vizinhos e desconhecidos em paradas de ônibus e dentro dos táxis.

 

Vinte dias durante os quais vamos desperdiçar sucessivamente todas as oportunidades de ficarmos calados e não fazermos a outrem perguntas sobre as propostas dos dois candidatos que avançaram para o mata-mata eleitoral.

 

A notícia ruim é que o País virou uma espécie de grupo de Whatsapp formado por mães da escola, vizinhos do prédio e primos recalcitrantes que largaram a bebida e entraram pra igreja. Ou seja, um inferno.

 

Nunca antes o nativo foi instado a perorar por tanto tempo sobre as próprias opiniões como agora, durante este segundo turno.

 

A última vez que tinha visto o Brasil tão dividido foi quando a Fifa lançou o Fuleco, prontamente acatado por uma parte da torcida como um animalzinho fofo e símbolo de nossas melhores qualidades e rechaçado por outra facção como sintoma de nosso mal-estar civilizatório por sua proximidade fonética e sonora com palavras como "fuleiragem" e "fuleiro".

 

Agora não estamos muito diferentes daquele 2014 conflagrado. Hoje, cada brasileiro se converteu num tribuno romano pontificando sobre os riscos iminentes de uma ameaça exógena projetada convenientemente no outro lado. O eleitor está convencido de que está em perigo. E o reflexo pode ser visto no octógono das ruas.

 

Engana-se quem diz que segundo turno é ótimo pra falar sobre ideias. Segundo turno de campanha presidencial é como prorrogação de final de Libertadores da América com Grêmio de um lado e Independiente do outro.

 

Em conversa com uma amiga, por exemplo, ela me confessou que via "bolsonaristas" em todo canto da cidade. Com que frequência?, quis saber, um pouco desinteressado na paranoia. "O tempo inteiro", ela respondeu.

 

O mesmo acontece do "outro lado", que enxerga "a ameaça petralhas" em cada peça vermelha do vestuário. Estamos intolerantes na política, mas na paleta de cores também.

 

Cada pessoa andando na calçada ou entrando no ônibus é um potencial eleitor do "outro lado" e, como tal, dever ser interpelada e pressionada a admitir em quem diabos votou no primeiro turno.

 

Entre os cearenses, criaturas naturalmente propensas a entabular conversas com estranhos quando esses estranhos não estão a fim de conversa, o caso se agrava ainda mais.

 

Ontem, por exemplo, pedi um carro pra ir até a livraria e notei um certo desconforto no motorista, um homem branco, com idade entre 35 e 40 anos e uma tatuagem estranha no braço.

 

Como permanecesse calado, ele finalmente rompeu o silêncio: votou em quem no domingo? A pergunta saiu quase como um cochicho. Como se tivesse medo da minha resposta tanto quanto eu tinha de respondê-la.

 

Disse pra ele que, em virtude da minha profissão, preferia não declinar. O condutor do carro, no entanto, apressou-se em identificar em mim um cara suspeito. E sapecou: pois saiba que eu votei nele.

 

Nele?, eu fiz que não entendi. Sim, no Ciro.

 

Moral da história: ainda tem gente disposta a conversar sem demagogia ou dogmatismo, ainda que todos estejam mais ou menos ressabiados diante de tudo que está acontecendo.

 

É um risco abrir a boca dentro de um carro a 70 km/h e declarar o seu voto, sobretudo se o motorista discordar de você. Mas não vejo outra forma de tentar encontrar um meio-termo pra essa confusão toda.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?