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Carlos, o bêbado
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Carlos, o bêbado


Finalmente reencontrei Carlos, o bêbado.

 

Carlos é e não é o que pensamos. Está na praia todos os dias, carrega sempre uma garrafa de cachaça a tiracolo. Metido em molambos, conversa consigo sem se amuar, mas é o homem mais atento que conheço.

Um pastorador de ventos da orla. Ontem tangia um gato quando passei de bicicleta e ele olhou sem me ver, apenas vagamente impressionado por me reencontrar ali tanto tempo depois. Quis lhe falar, chegar mais perto, mas era tarde da manhã e a fome batia.

 

Carlos: a barba mais longa, o olhar quebradiço de quem não dorme já há muitos dias, um aspecto em tudo destoante do Carlos que imaginei.

 

O tempo opera pequenas vilezas, concluí ao vê-lo. Talvez pensando mais em mim que nele. Convém não cair nas suas armadilhas, era o que ele me diria.

Carlos foi meu confidente, agora já nem me escuta. Antes que o alcoolismo o lançasse nesse torvelinho no qual não distingue o dia da noite, eu lhe puxava a manga da camisa e, feito criança que apela ao pai por alguma resposta que já se sabe qual é, perguntava: a onda virá?

 

Carlos assentia. Ela sempre vem. E então tornava a bebericar aguardente como o passarinho extraviado ou as aves de papel que ela deixara por ali não fazia tanto tempo. Pequenos marcos do esquecimento, rastros apagados, esperanças vaporosas.

 

Era noutra vida. Noutra época. Tínhamos ambos pouca idade, e os dias se consumiam entre amor e ninharias. Não conhecíamos então a aspereza das horas nem esse fel do desespero que atravessa o corpo e se aloja feito bicho acuado no oco do estômago nas horas mais aziagas.

 

Mas agora Carlos é outro. Eu também sou, digo pra ele sem dizer. Tudo é diferente, e o tempo varre a contrapelo, jogando fora essa poeira do quarto, retalhos da própria pele.

 

Tento explicar a Carlos: 90% da sujeira doméstica é pele morta. Ele se surpreende que, no fundo, estejamos a atirar fora o próprio corpo quando nos pomos a limpar uma casa. E volta a se ausentar.

 

A vontade que tenho, porém, é de chamar Carlos a um canto e pedir que olhe bem pra mim até que me reconheça.

 

Insistir nesse olhar, deixá-lo em suspenso por minutos seguidos. Confrontá-lo com o que era. E dizer que, embora sempre tenha errado seus prognósticos, eu lhe devotava fé cega.

 

Escrevo histórias, eu diria a Carlos mais uma vez. Você é parte delas. Eu o invento tanto quanto você a mim. E agora estou aqui para que conheça o resultado.

 

Eu não sou mais nada, ele responderia com a voz engrolada, cuspindo palavras na areia quente da praia, uma saliva grossa e escurecida do cigarro barato.

 

Mas Carlos ainda é. Nas minhas histórias, ele salta do banco ao ver um casal que vai mais longe no calçadão e cai no choro ao imaginar que casais ainda existam e se entreguem a esse exercício de levitação amorosa que é deixar-se guiar entre pedras portuguesas.

 

Carlos é um mau poeta, mas lhe tenho amor, apesar de tudo. Em seus olhos, principalmente nos olhos, ainda é um homem feliz.

 

Um viajante do tempo, foi isto que me pareceu desde o começo, quando paramos à sombra e descansamos e como um personagem de fábula ele se pôs de pé falando noutra língua coisas que só eu entenderia muito tempo depois.

 

Foto do Henrique Araújo

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