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Praia/sertão
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Praia/sertão

 

Em pesquisa rápida na internet, chego a uma página que explica em pormenores o cheiro do mar. Precisava escrever sobre o vento, essa força que arrebata, e queria entender por que o mar tem o cheiro que tem, um odor característico que é como a junção de muitos odores. Procurava uma palavra que traduzisse então o predomínio do salgado.

 

Fui bater em corrosão. Da crônica original, excluí um parágrafo inteiro que reproduzo agora: "Aqui o vento ergue-se desde o mais perto dos pés, arrancando da terra a quentura, e depois levanta-se num ímpeto, percorrendo o corpo e nesse trajeto deixando marcas".

 

Agosto e setembro são os meses de ventania que atraem ao Ceará turistas e praticantes de esportes. É quando as hélices giram mais velozes, as árvores agitam-se quase a deixar as calçadas e as roupas estendidas nos varais reviram-se sobre si mesmas.

 

Tudo é inclinação e dobradura: corpos e sombras, que se prolongam e ramificam. Mas há principalmente esta particularidade: o cheiro. Por aqui carregamos essa memória corrosiva a todos os lugares.

 

Por isso talvez os símbolos da cidade sejam também totens esquecidos da passagem abrasiva do tempo, num testemunho constante do esquecimento e do tardio.

 

Um navio encalhado, um farol abandonado, uma biblioteca em obras intermináveis de frente para o mar, um prédio histórico cuja memória é frequentemente ameaçada pelo capital imobiliário, as árvores que restam de um antigo empreendimento que já foi signo de riqueza mas agora agoniza.

 

E o maior de todos: o esqueleto de um aquário, história devorada pela falta e ponto de encontro de múltiplas falências.

 

No lugar de tudo isso se vão erguendo novos objetos de adoração: faixas coloridas pintadas no chão, cercaduras que limitam a rua e criam uma noção de civilidade, bancos públicos como os de casa, um novo centro de eventos, novas rotas de bicicleta, uma nova praça, um cinema mais moderno, um novo café, um novo bistrô e por aí vai.

 

Renomeiam-se os espaços para que não tenhamos de conviver com o fardo do velho. A paisagem como uma rasura sobre a qual vamos aplicando camadas frescas de uma tinta que, todavia, não esconde as demãos mais antigas.

 

Sob a pele da cidade novidadeira, tudo descasca, tudo condenado de antemão.

 

Entre nós, a persistência da corrosão é mais que uma figuração literária, já explorada por muitos escritores da terra. É um emblema social, um modo de vida, uma moeda de troca. A ação do tempo, sempre natural, é motivo para que o velho esteja continuamente sendo substituído pelo novo, que se fetichiza.

 

Fortaleza: fetiche. Uma capital-néon na alta madrugada na busca desesperada de experimentar a grande novidade da hora.

 

Os novos-ricos já muito doentes. Os velhos-ricos feito múmias. Os pobres acossados atrás dos muros.

 

E, varrendo o mapa de leste a oeste, o vento corrosivo e a maresia que se desprende das ondas quebradas nessa geografia de ruína.

 

O texto que li na internet falava sobre os malefícios causados ao planeta por muitas ondas partindo-se ao mesmo tempo em muitas praias do mundo, num fenômeno que libera substâncias tóxicas na atmosfera.

 

Então penso nesta Fortaleza abraçada quase inteira pelo sal e o litoral, que atravessa a cidade numa nuvem química no sentido praia/sertão, comendo aos poucos estruturas metálicas, edificações, casas, livros, poetas, caranguejo, bicicleta, amores.

 

Foto do Henrique Araújo

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