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Museu de coisas mortas
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Museu de coisas mortas


Já muito cansado, passei a admirar as fotografias das chamas e a derrocada da memória. Labaredas crepitantes, línguas avermelhadas se erguendo muito acima das paredes centenárias do museu, nuvens escuras e espiraladas de fumaça vistas de longe, rostos contorcidos ante o abismo da perda consumada.

 

E, diante da TV, mesmerizada como os primitivos receosos da própria extinção, a audiência.Pensava então: a memória é comburente, incendeia e depois esfria, deixando atrás de si um rastro qualquer a partir do qual talvez seja possível um dia remediar o irremediável.

 

Mas o irremediável é isto: o que continua a queimar mesmo passado tanto tempo.

 

Na internet, multiplicavam-se os relatos, todos muito dramáticos, nenhum capaz de restituir o sentido do que se havia passado.

 

E o que de verdade tínhamos visto? Não pergunto o que a TV mostrava em escaladas hipnóticas e atualizações frenéticas, com entradas ao vivo e explicações vagas. Mas o que nós, de fato, havíamos testemunhado.

 

É essa retenção que falha em horas como esta. Dizer que uma parte vital da nossa experiência documentada foi lambida pelo fogo não basta. Aquelas imagens de escombro dizem mais.

 

Mais o quê?

 

Não me sinto capaz de nomear. Embora haja palavras aos borbotões, não há tantas assim quando mais precisamos. E este é um momento de convergência de muitas tragédias no qual temos precisado de palavras.

 

Não apenas porque os políticos prodigalizam o nervo do significado preciso, gastando tudo e vulgarizando o dito, de maneira a extrair dessa pauperização um ganho pessoal. Afinal, disso depende uma eleição - mais do truque verbal do que da verdade.

 

Mas porque a tarefa de reerguer, seja uma casa, seja uma vida, seja a si mesmo, impõe sempre duas coisas: gesto e narrar.

 

Então se quisermos um dia que o fogo não volte a engolir tudo em volta, vamos ter de aprender a narrar o que vimos.

 

Eis o drama de agora, quando as palavras mais valiosas erram e o sentido do que é comum vacila.

 

Ou alguém poderá explicar algum dia o simbolismo de um fragmento de meteorito solidamente cravado no centro de uma paisagem devastada?

 

Alguém por acaso terá condições de dissociar as relações que se estabelecem entre a ruína de um museu e a destruição lenta e persistente do tecido social sob governos que tripudiaram seguidamente da noção de coletividade?

 

Uma ruína que não é apenas de estrutura física, de pedra e tijolo, de fósseis carbonizados e registros apagados. Uma ruína que é sobretudo da palavra.

 

Há escassez inclusive para se referir à escassez, como se nenhuma delas servisse, nenhuma suficientemente acesa e elétrica a ponto de fazer correr em transmissão essa urgência que deveria ser coletiva neste momento. E não é.

 

Então vem o incêndio. Se por balão ou curto-circuito, importa bem pouco agora. Interessa é que, por todos os lados, há uma falência e dentro dessa falência o risco de jamais conseguirmos debelar esse fogo, que não começou no museu, tampouco vai se encerrar nele.

 

É preciso recuar no tempo e começar a tatear causas enquanto ainda há memória, mesmo que ameaçada pela consumição.

 

Foto do Henrique Araújo

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