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Ivone
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Ivone


Conversei com H longamente no último fim de semana. Parecia mais velho, não exatamente feio, mas os cabelos mais brancos e uns quilos mais magro. H, eu lhe disse, o que ainda há para ser feito?

 

Calado feito jagunço sob a luz baça da mesa do café, os óculos retangulares, as lentes muito sujas, as mãos postas como se em reza. Inspecionei ao redor: casais velhos e moços, apenas casais. Entretidos com braços e pernas, casais e suas crianças, casais e suas mucamas de avental branco.

 

Casais aristocráticos como se ainda no século XIX. Casais indiferentes, casais mantidos à força de algum elo comercial. Casais como sócios numa start-up. Casais como ex-amigos, como parceiros de buraco, como recém-casados. Casais como espécimes raras de um mundo que não existe mais. Casais de toda sorte.

 

O café esfriou. Perguntei a H se queria o biscoito que acompanha a bebida. Como dissesse não, estiquei o braço e comi.

 

Tinha um livro que pegara sem grande interesse da estante e que acabaria devolvendo noutra parte da loja, esquecido sobre a prateleira quando pareceu se interessar por uma história em quadrinhos. Qual livro?

 

Tento lembrar. Richard Flanagan? Acho que não. Pergunto a H se quer mais alguma coisa, ele balança a cabeça negativamente. Está satisfeito, afinal já é hora de ir.

 

Digo que fique mais um pouco, ele faz um gesto de amuo, como se fingisse uma zanga por razão que vai além do pedido e chega a outro ponto, chega a uma nuvem de palavras que zumbe sobre sua cabeça e abaixo da qual ele patina pra lá e pra cá.

 

Que letra bonita, H, falo para animar. Está escrevendo no guardanapo o nome da garçonete, Ivone. Anota várias vezes, Ivone, Ivone, Ivone. É o nome da minha tia, ele diz. Um nome antigo, talvez apenas um pouco antipático, e a garçonete ri. Ivone é minha avó, mas ela já morreu, responde a garota, que tem os cabelos presos em coque e uma expressão de esforçada alegria.

Todos temos uma avó que morreu. Ou que morrerá, dá no mesmo.

 

Após algum tempo, H vai embora de mãos vazias. É a primeira vez que o vejo sair de uma livraria sem levar nada. Dias depois, nos falamos pelo telefone.

 

Ele pergunta se lembro da garçonete do café, eu digo que sim. Ivone? Confirmo com um grunhido. Ele fica em silêncio, então se despede prometendo me contar a história da avó.

 

Ela era uma bruxa, uma mulher muito forte, ligada à natureza, previa chuvas e adivinhava o sexo dos bebês. Também tinha visões.

 

No meio da tarde, virava-se para uma parede e falava com alguém, um tio que já havia morrido, outro que tinha desaparecido havia décadas depois de viajar a Manaus durante o ciclo da borracha, uma prima que passava as tardes na varanda de casa a costurar e cuja morte chegou tão de repente que se confundiu com o sono.

 

A avó era assim, uma mística sem misticismo, a alma formando curvas nos cantos do corpo, zonas repletas de nada que ela jamais oferecia à vista.

Por que está me dizendo isso, H?

 

Ivone me lembrou minha avó. O coque, talvez. O modo de falar, o acanhado do sorriso, o nome tão somente, o jeito como se explicou quando lhe perguntei se pensava com frequência em pessoas que haviam desaparecido muito tempo atrás.

 

Foto do Henrique Araújo

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