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Uma conversa com o tempo
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Uma conversa com o tempo


Uma amiga que não vejo há muito tempo me mostra uma foto na qual a mãe lê o jornal do dia. Aos setenta e poucos, ela tem o corpo recurvado pra frente. Segura uma lupa com que aproxima a vista das letras. O papel cede diante dos olhos, dobrado. É uma imagem bonita pela qual sempre agradecerei.

 

Pensei na minha própria velhice. Onde estarei, como, se bem ou mal dos olhos. Se vivo ou morto. Se consciente ou falho, se ainda disposto e mesmo interessado no mundo, se generoso ou rabugento, se amante ou amaro.

 

A amiga conta que a mãe se prende ao agora, que acompanhar o noticiário é seu modo de não esquecer, e nisso também há tanta beleza que me fio na palavra para não soltar eu mesmo o arranjo das horas.

 

Feito o bordado, a mãe traça, linha a linha, uma costura de palavras, criando enredo com o dizer dos outros, que agora é dela.

 

Ela, que mora de frente ao mar e acorda todos os dias para uma imensidão aquosa, escolhe o jornal por janela, o presente como paisagem, o cotidiano como escapismo.

 

Ela, cujas ideias já fogem, porque a idade avança e, aos bocados, também vamos deixando de lado quem somos e nos tornando um outro que a família vai descobrindo, às vezes de um jeito sofrido, às vezes conformada.

 

Isso também me fez pensar em mim. Precisamente, no quanto há de fuga quando se supõe mergulhar na realidade. Ou quando escolhemos as horas do dia para cumprir certos ritos e executar certas tarefas, num acordo tácito com a concretude das coisas.

 

O presente tão volátil. Não podia imaginar que um jornal servisse ao abandono e ao exílio de si quando as lembranças fracassam e tudo o que somos é esse instante contínuo.

 

Por isso, agradeci novamente à amiga. Por me fazer ver que, mesmo no intenso agora, há muitas gradações e nas gradações outras tantas. E que não é preciso muito esforço pra enxergar.

 

Admiti que agora queria morar uns minutos nos olhos da mãe, sentada de costas pro mar, em trabalho de admiração, não pelas águas, mas pela palavra.

 

Disse ainda que ela, como a deitar-se sobre o jornal, me fazia pensar também que o conforto é uma noção muito restrita, que temos pena e projetamos no alheio uma fragilidade que é mais nossa. No fundo, no entanto, há uma fortaleza naquele gesto.

 

E, aqui, a amiga já de lado e eu falando sozinho, pensei na avó, que costumava dizer do mundo que está condenado. Do arroz que a mãe salgasse, do amor que deixasse, da fazenda de roupa a que impusesse um corte tortuoso, lá vinha num passo manso do quarto.

 

Dizia: está condenado. Falava com serenidade, sem desacato a ninguém, a constatar apenas o precário e a reparar no irremediável que era o exercício do malfeito levado com insistência e zelo.

 

Talvez visse até uma boniteza nisso. Estar condenado e mesmo assim estar na vida de cara pro vento. Uma parede que se orgulhasse do reboco ruim, um botão despregado que não se importasse, uma roupa encardida que fosse à festa, uma memória estropiada que se avivasse de contar a mesma história sempre.

 

A avó, que tinha vista boa e não sabia ler, via no mundo essas letras imaginárias. Nelas, cravava os olhos de atenção. Não gostava que estivesse no mar. Cuidava mais era de estar presente em casa, a sentir nos objetos o ritmo cadenciado do tempo.

 

Foto do Henrique Araújo

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