Logo O POVO+
Os ventos de agosto
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Os ventos de agosto


Acordei pela madrugada e os ventos tinham assanhado a casa, a mesa da sala revirada e os jornais como que espalhados de propósito. Mas era o vento, apenas.

 

Por esta época do ano a Cidade encrespa-se. Roupas ganham volume, os cabelos se desorganizam e andar pelas esquinas é risco certo de queda.

Cair com o vento. Penso na vergonha. Pior que acenar e o ônibus não parar ou deixar no ar aquele gesto de quem avista ao longe um amigo que não nos viu e continuou no seu passo.

 

Na praia vêm as chicotadas de areia nas pernas e braços, e depois tudo se acalma. É também um modo de o vento ensinar que os movimentos são sempre em pares de ondulação. Altos e baixos, tormenta e sossego, tudo se sucedendo em orquestração.

 

E agora começa a ventar mais forte em Fortaleza. Há dias não vou à praia. Mas a praia sempre vem. Na cidade é praia em todo canto. Mesmo uma varanda no bairro da periferia tem esse cheiro de praia trazido de muito longe. É o cheiro da corrosão.

 

Aqui onde estou o vento deixa pra trás esse salgado de uma passagem, o reboliço da pedra atirada ao mar. Mesmo o quente do sol transporta-se no vento pra lá e pra cá.

 

Vento é lembrança. É também nossa melhor comunicação. Já era assim com os índios da aldeia quando precisavam se entender uns com os outros. Faziam isso apurando os ouvidos, traduzindo farfalhar de galho de árvore em oralidade e espichando a vista para as ameaças que se confundiam com as sombras.

 

Ventos são pródigos em fazer surgirem formas estranhas contra o fundo azul do céu. Mexem com tudo, rumorejam quando é silêncio, criam algaravia no mais sossegado dos dias, embaralham o que é disciplina.

 

Com vento não se brinca, dizia uma tia velha que não casara quando uma moça tinha de educar a saia pra que o vento não a suspendesse à vista dos moleques a meio caminho da bodega.

 

No Ceará ainda há pouco costume de reparar nessa força invisível. Falamos do sol, do mar, da jangada, mas o vento é matéria escassa na cantoria dos poetas.

 

Vento é golpe de ar, massa deslocada que anima objetos. Cientificamente, é isto. Não carece romantizá-lo, tampouco fantasiar deidades por trás das maquinações de uma rajada mais forte que abra um livro qualquer numa página específica.

 

E nessa página conste palavra ou frase inteira cuja leitura empurra o olvido para muito antes. Porque nisso o vento também é hábil: sussurrar fantasmagorias, acender revelações, prestidigitar grafias amarelecidas. Um coração exposto ao vento é todo frêmito.

 

Mas não há que tentar ouvir atrás da porta e surpreender de repente o desenho do vento que acaba de entrar pela janela. É tudo a mesma fabulação, tudo inventado, tudo sopro que vai devassando os cômodos de ponta a ponta, chegando pela janela e saindo pelos basculantes.

 

Por isso aprendemos cedo que o vento é uma escrita, varre o papel, limpa a folha, chacoalha a cabeça, corrige, erra.

 

Apreendê-lo não é hipótese que se leve a sério. Ignorá-lo é também coisa que não se faz. O próprio vento é um dar-se conta de que há fenômenos para os quais temos todas as palavras do mundo, nenhuma delas presta.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?