Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
"Criar os filhos", ouvia a mãe dizer quando eu era a criança e ela uma mulher adulta. Nessa época, eu tinha 10 e ela talvez 35, uma idade tão avançada que não entrava na cabeça do menino.
Hoje eu tenho 38 recém-completos. É estranho beirar os 40, mas também muito bom. A sensação de que a pista escorregadia da mocidade definitivamente ficou pra trás e, por mais All Star e camiseta de super-herói que a gente use nas festas, a história agora é outra.
Mas voltando. Criar os filhos devia ser uma tarefa coletiva, tão trabalhosa que é. E cara também. Brinco que a Caixa devia ter uma linha de financiamento pra cada criança que a gente coloca no mundo. Outra no BNDES. E mais uma pelo BNB. Crianças cuja educação seria bancada por vaquinhas virtuais e rifas e sorteios de brindes e editais.
Mas criar os filhos é um exercício braçal a exigir dos pais e mães muito mais que recursos. Exige sobretudo um redesenho da vida.
Não gosto dessa palavra: redesenhar. Coisa do jargão de RH, que pega os melhores vocábulos da língua portuguesa e estraga.
Prefiro rasurar, que é borrar, escrever por cima. Está mais de acordo com o que a gente faz e é durante quase todo o tempo. A gente é mais rascunho que obra acabada, mais remendo que curativo pronto.
E os filhos? Os filhos obrigam a uma rasura constante do que a gente vai escrevendo nesse livro estropiado dos dias.
O pai faz uma casa com duas portas, eles vão e criam uma janela. O pai ergue uma parede entre a cozinha e a sala, eles derrubam e deixam entrar mais claridade. O pai acha que a agora é noite, eles insistem que é dia. O pai diz "A", o filho responde "Z".
Filhos são o avesso, e criá-los é virar ao contrário, bordando por dentro uma costura que não entendemos ao certo, que muitas vezes não faz sentido, mas que costuma terminar bem.
Então, como falava a mãe, um dia você terá os seus e entenderá o que estou tentando dizer com esse resmungo sobre criar os filhos. Começava brigando assim sempre que parecia contrariada com algum malfeito nosso, uma indisciplina.
E aí esboçava uma quase desistência da condição que é ser mãe e carregar sozinha boa parte do tempo a responsabilidade por tanta coisa.
Mas não arredava pé. Só avisava: "Criar os filhos...". Vocês vão descobrir sozinhos o que é isso. Quando acontecer, vão me entender.
Não digo que entenda hoje, mas antes de ontem estava andando sozinho pela casa. Tudo era silêncio de fim de domingo. Então pensei: criar a filha. É uma missão da vida. Não termina jamais. É assustador.
Há, no entanto, um outro lado dessa pedagogia. Sobre isso a mãe não conversava tanto. Os filhos criam os pais.
Eu não era pai até algum tempo depois de a filha nascer. Olhava a cria nova, os gestos desarticulados e os olhos arregalados no berço. Admirava. Perguntava se já era amor e surpreendia tanto bem-querer e tanto medo. Mas ainda não era pai. Não saberia ser.
A filha, no crescendo, é que foi apontando onde, na rasura que eu era e sou, podia rabiscar um traço diferente. Aplicar uma cor nova. E arriscar uma forma ainda não experimentada.
Agora sou eu que miro e vejo, como diz o Guimarães Rosa, e me pergunto: o que diabos essa menina vai me ensinar hoje?
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