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A memória da planta
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A memória da planta


Era um sábado, talvez sexta. Não lembro. Passeei desinteressado entre vasos de plantas, apontando aqui e ali para uma que chamasse a atenção. Uma rosa, um lírio, uma orquídea.

 

Saí do quiosque na Praça das Flores com um bonsai na mão. Sempre quis um, talvez pela repercussão tardia e nunca totalmente afastada da lembrança de Karatê Kid, mas também pela leitura de Bonsai, de Alejandro Zambra.

 

Em casa deixei o vaso em cima de um móvel destinado originalmente a uma radiola e aos discos que ainda não temos. Não como ordinário objeto de decoração, mas como peça de valia a que talvez gostasse de por os olhos algumas vezes ao dia. Houve protesto. Insisti.

 

Vistosa e de um verde brilhoso, a copa miniaturizada curva-se à esquerda, como um topete que se derramasse à força do vento que mal chega àquele pedaço. Um caule único e tortuoso desenhado como em pintura de criança acompanha toda a extensão do vaso vermelho.

 

As raízes, rasas mas várias, espalham-se na porção diminuta de terra que o plástico contém. Ali, nesse exíguo de espaço, a planta exercita rotinas e fabrica mundo próprio, indiferente aos três ou quatro livros que mantenho ao lado.

 

É um animal estranho esse que nos olha de um canto da casa, sabedor que é dos movimentos domésticos, as sístoles e diástoles de qualquer relação, os mapas que deixamos impressos no soalho íntimo, nas andanças madrugada afora.

 

Hoje sei que o trouxe comigo porque me pareceu uma proeza que uma árvore tão pequena se dobrasse tanto sem quebrar, mantendo-se em equilíbrio assim. Meio cediça, mas ainda viva. E, mais que qualquer outra, silenciosa.

 

Tinha com ele desde sempre uma proximidade de amigo antes de ser. Amante a quem fosse chegando aos poucos sem dizer palavra. E nisso coubesse todo o dito e o não dito. Tocasse, e já se adivinhasse nesse gesto muito do fim.

 

E assim, de uns tempos pra cá, o bonsai deu pra findar. Ganhou uma tonalidade cinza. Pior: perdeu viço, desbrilhou e agora parece murchar, num movimento de morte irreversível.

 

Pensei na fuligem que chega da rua, essa nuvem estrangeira que vai tisnando as paredes e deixando roupas e lençóis encardidos, estragando calcinhas e cuecas e empesteando mesa e cadeiras. Mudei de lugar. Continuou.

 

Depois atribuí a alteração brusca a um efeito da primavera - as folhas caíam menos por doença do que por precisão de cair. Mas aqui temos apenas duas estações, e nenhuma árvore se resseca por capricho.

 

Finalmente cheguei à conclusão de que eram fungos. A planta estava doente.

Agora tento salvá-lo regando mais vezes ao dia e conversando bobagens, certo de que nem as palavras salvam do que já se despede, tampouco a água tem poderes miraculosos.

 

Apesar disso, entabulo conversa. Pergunto se está quente, se deve chover, se o bonsai tem alguma dica para uma novela que escrevo e cujo início e fim não se conectam, de maneira que preciso encontrar a parte do meio.

 

Calado, o bonsai move-se pouco. Fala menos ainda. É um bicho taciturno, e nunca sei se apenas não está para papo ou se tenta me dizer algo numa língua própria, emitindo sons que não entendo.

 

Foto do Henrique Araújo

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