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Vida: modos de usar
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Vida: modos de usar


Abro o livro ao acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já soubesse de antemão. Então encontro esta narrativa. Uma garota que perdeu a memória depois que seu namorado a deixou. Na verdade, ela tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade.

 

A menina esquece tudo no lapso de um ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças. Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.

 

Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia estado a seu lado durante todo esse tempo, vai embora mais uma vez.

 

O título da história é Dèja vu (de novo). Foi apresentada como monólogo num teatro em Pitsburgh (EUA) sob o tema "Não olhe pra trás". É uma das 45 narrativas que integram o livro Tudo que é belo. Pode ser lida à página 146, como parte do bloco "Mantendo o controle".

 

Por muito tempo, tomei decisões com base na sorte, atribuindo ao acaso uma importância excessiva e procurando auxílio de onde quase sempre não viria nada. E mesmo depois de tudo eu ainda queria bater contra o muro e deletar de uma vez por todas anos inteiros da minha vida. Dias, senhas, aniversários, frases, gestos, cheiros, sabores e imagens. Simplesmente deixar que sumissem.

 

Mas aí, também casualmente, comecei a leitura do romance A gorda de um modo pouco usual: pelas epígrafes, que costumo saltar, mas nessas eu me detive. Nesse livro incrível, a escritora portuguesa Isabela Figueiredo narra fatos relacionados à sua própria vida. São dolorosos, mas também engraçados. E por isso acho que, apesar de tudo, ela não gostaria de se desfazer deles assim tão facilmente, como a jovem de Dèja vu. O que explica a escolha da autora pela epígrafe de Javier Cercas: "O passado nunca termina de passar, sempre está aqui, operando sobre o presente, formando parte dele, habitando-nos". Como se houvesse fatos passados e outros nem tanto.

 

Numa reportagem publicada na revista Piauí, o escritor Karl Ove Knausgard afirma: o passado está na gente e não lá fora. A frase, que encerra uma longa descrição de uma mulher que poderia ser uma personagem de Turguêniev, tenta demonstrar que a paisagem nunca passa. E, dentro dela, as cenas são quase sempre as mesmas. Os dramas humanos têm essa qualidade da persistência.

 

Karl Ove é o autor da série Minha luta. São seis volumes e 3,5 mil páginas sobre uma epopeia pessoal e excruciante na qual o escritor pretendeu recriar a própria vida em pormenores sem importância. Seus livros estão cheios de vastas porções de tempo morto. Muitas páginas em que nada parece acontecer.

 

De repente, porém, como se o leitor puxasse uma carta mágica desse baralho invisível, algo surpreende. E não é nada extraordinário. É apenas o encadeamento normal dos dias, horas e mais horas encaixando-se umas às outras para formar o caldo da vida.

 

Foto do Henrique Araújo

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