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Neymar, o fingidor
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Neymar, o fingidor


As quedas de Neymar passaram de assunto de rede social a questão global, como o aquecimento e a escassez de água potável, com parte da imprensa internacional dedicando páginas e mais páginas a espinafrar o craque brasileiro.


A grande pergunta é: Neymar é corrupto? Não falo das escaramuças em que sua família se mete para driblar o fisco europeu, mas das simulações em campo. No último jogo, o atleta parecia ter uma convulsão depois do pisão do jogador do México. Fingimento ou agonia real? Ex-jogadores, comentaristas e astros da TV têm sua opinião, quase sempre desfavorável ao atacante.


Como Fernando Pessoa, Neymar é fingidor. O gênio da bola dramatiza em excesso, levando público e torcedores à desmedida – uns por amá-lo e outros por odiá-lo. Joga não apenas com bola nos pés, mas com bailado, técnica e teatralidade. Em Neymar tudo é performance, e mesmo o seu choro é questionado – gesto autêntico ou parte do show elaborado pelos marqueteiros?


Não há dúvida de que se trata de um atleta em pleno domínio de sua artesania futebolística. O lance com o jogador é outro. O buraco, bem mais para baixo. Neymar ultrapassa a fronteira entre a saudável malandragem, atributo de qualquer jogador, e entra no perigoso terreno da sabotagem, do engano, do falseamento.

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Num esporte cada vez mais videomonitorado, no qual as regras passaram a ser revistas num esforço de faxina ética, a postura do craque soa como tentativa de ludibriar a opinião pública. Mais que esperteza, é a burla despudorada da norma que tem assombrado torcedores e levado detratores a pedir até a suspensão do brasileiro por seu péssimo exemplo às novas gerações.


E aqui chegamos ao ponto: a autoimagem do Brasil para o mundo. No evento esportivo que mais intensamente mobiliza afetos ligados a nacionalismos e todos voltam a ser apenas japoneses, mexicanos e alemães, logo se decantam as características do brasileiro, entre as quais está o “jeitinho”.


O nome já entrega: “jeitinho” é a maneira usual com que se resolvem problemas no país do futebol – não um jeito, mas um jeitinho, no diminutivo usado para estabelecer intimidade. É a gambiarra, a força do laço de pessoalidade na resolução de impasses que exigiriam certo lastro formal, a presença do coleguismo no favorecimento de terceiros, a imposição do privado ao público.


Ora, nada define melhor Neymar do que essa estética da gambiarra. Não apenas por sua assinatura futebolística, marcada por dribles engenhosos e volteios de corpo, num jeitinho inimitável de conduzir a pelota. Mas pela natureza ambígua de seu caráter. Afinal, ele é apenas cai-cai ou mal-intencionado? É mimado ou trapaceiro?


Como o Brasil, Neymar é atravessado por contrastes. Em campo, foi decisivo para o avanço da seleção às quartas. Fez um gol e deu passe para o segundo na vitória sobre o México. A Fifa o escolheu como o cara da partida. Louvado por Tite e defendido por colegas. Sem ele, a Canarinho é apenas um time mediano.


Mas, no melhor estilo “médico e monstro”, é também dual. Mais que isso: a persistência na encenação é uma ameaça constante não apenas a sua carreira, mas um dedo apontado para o próprio país. É, ao mesmo tempo, nossa principal esperança de gol, mas também a lembrança permanente de que, para chegar ao título, somos capazes de tudo, até mesmo de fingir desavergonhadamente.


Nele o talento, que há de sobra, não basta: é preciso induzir a um juízo que o favoreça.

 

Foto do Henrique Araújo

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