Logo O POVO+
Crônica do Dia. O elogio do mata-mata
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Crônica do Dia. O elogio do mata-mata

Numa Copa equilibrada como a da Rússia, apenas o mata-mata é justo. Imprevisível, nele vantagens e desvantagens se dissolvem, restando apenas a guerra de 11 contra 11, seja no tempo regulamentar, seja nas disputas de pênaltis. Se a tecnologia corrige agora o que antes era erro humano, numa tentativa de aproximar o futebol da precisão maquinal, o mata-mata restaura a tragicidade do esporte e falibilidade de todos nós, lembrando a torcedores e jogadores que a sorte ainda é a primeira e a última a dar as cartas.

 

Não o divino VAR nas jogadas cuja dúvida leva o árbitro ao impasse, mas a enxurrada de pênaltis perdidos a mostrar que errar humaniza. Claro que técnica e domínio constituem elementos importantes no enfrentamento dentro das quatro linhas. Sem sorte, porém, como dizia o maior cronista do futebol, não se chupa sequer um Chicabon. E nisso o mata-mata é crucial: roleta-russa por excelência, instaura aleatoriedade como escape à higienização do videomonitoramento dos atletas, promovendo o caos contra a ordem dos esquemas montados na tentativa de surpreender o adversário.


Ocorre que na Copa da Rússia ninguém mais é pego no contrapé. Dizem que a globalização nivelou as seleções e os jogadores se conhecem a fundo porque treinam e se enfrentam nos campeonatos europeus. Num mundo conectado, as táticas e estratégias também se copiam à vontade, o que pode explicar a saída precoce de Alemanha, Argentina, Portugal e Espanha – não sei se a do Brasil hoje, mas não ficaria surpreso se a Canarinho rodasse.


Aí vem o mata-mata na contracorrente desse futebol homogeneizado. A modalidade de disputa que sucede à fase de grupos não se chama assim por acaso. Autoexplicativa, é partida de vida ou morte, e cada lateral ou escanteio podem ser de fato decisivos, como se narrados pelo locutor do Esporte Interativo, que se esgoela nos lances mais triviais na tentativa de recordar que se trata de jogo, com todas as concessões possíveis ao azar e à fortuna.


Numa época de mesas-redondas bocejantes, o mata-mata devolve o mundo a seu eixo fundamental: futebol, como a vida, não está previsto nas estatísticas. A gente pode até enfileirar um rosário de números a favor de Messi e Cristiano Ronaldo, mas aí vem um Mbappé ou um Cavani e desmontam a lógica que antecede a peleja. Dentro de campo, como lembrava Garrincha, é sempre preciso combinar com os russos.

 

HENRIQUE ARAÚJO
henriquearaujo@opovo.com.br
 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?