Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
A classificação do Ferroviário para a Série C e o protagonismo de Tutuba "Vida Loka" repõem a singularidade do Ceará (a unidade federativa) no cenário nacional. Após o revés da seleção de Tite na Copa do Mundo, incapaz de empatar um jogo contra a Bélgica e forçar uma disputa de pênaltis, o time cearense mostrou que pode atuar em condições totalmente adversas e sair vitorioso.
Num gramado mais acidentado que a avenida José Bastos, jogando fora de casa e atrás no placar, o Ferroviário deu banho de tática e controle emocional no escrete Canarinho. Sim, Edson Cariús é maior que Neymar. E Tububa já era pistola muito antes de virar modinha. O resultado não poderia ser outro: o Ferrão está na semi. O Brasil, não.
Sem coaching, tecnologias de ponta, patrocinadores milionários e fiando-se apenas nos poderes milagrosos do seu mascote transgressor, o clube da Barra conquistou o acesso à Terceirona num momento em que o Ceará faz uma campanha claudicante na Série A, atraindo holofotes negativos, e o arquirrival Fortaleza começa a passar maus bocados na B, desmistificando o mito Rogério Ceni.
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Tradicional agremiação futebolística e salvaguarda da cultura da arquibancada, cabia ao Tubarão a dura missão de restaurar a ordem na capitania do Siará Grande, este pedaço de chão que foi sendo passado de mão em mão por séculos até chegar à dinastia de Sobral. Para evitar vexame maior, o time compreendeu o seu papel histórico na épica batalha contra o Campinense. E não deixou barato.
Numa terra em que túneis ficam submersos duas semanas depois de entregues pela Prefeitura e o mesmo equipamento esportivo (Centro de Formação Olímpica) é inaugurado 17 vezes pelo governo estadual, o acesso do Ferrão é um tapa na cara da sociedade. Gente como a gente, o time desafia bolões dos privilegiados da classe média e debocha da indiferença da geração Playstation, que sabe de cor a escalação de um Manchester City, mas ignora os feitos de um Janeudo ou de um Leanderson.
Sediado na Barra do Ceará, berço da nossa terrinha, e fundado como um braço esportivo de uma estatal, o clube consolida-se como a terceira via do futebol local. Modesto, presta-se ocasionalmente a alegrar os torcedores, papel às vezes ignorado pelos grandes times da Capital, que se converteram em plataformas políticas para os seus presidentes.
Mas não o Tubarão. De trajetória pendular, às vezes flertando com a autogestão, o Ferrão (apelido carinhoso) ou Ferrim (diminutivo ambíguo) combina uma curiosa característica: a vocação para a felicidade e a resistência. Essas duas qualidades se plasmam nos apaixonados seguidores do clube, que, após mais de duas décadas sem conquistas, testa a sua resiliência no dia a dia.
Ora, torcer Ferroviário nunca é apenas deleite, mas a prova cabal de que se está diante de um exercício de fé. Daí a explosão de alegria antes de ontem, logo após a cobrança de pênaltis. Num jogo encarniçado, o time decidiu o seu futuro na marca da cal, privilégio que o Brasil do folgado Willian e do brilhante Firmino não pode experimentar.
Agora, enquanto o mundo espera o domingo de decisão entre as ricas seleções europeias, o cearense vive mesmo é a expectativa da divulgação das datas para os jogos do Ferroviário. Mbappé e Hazard que me desculpem, mas quero ver é Cariús levando o Tubarão até a final.
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