Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
A Copa do Mundo também é uma oportunidade de negócios disruptivos. A cada partida, revelam-se ocupações insuspeitadas, como a do analista de choro, o especialista em avaliar o grau de veracidade e entrega de um jogador que se debulha em lágrimas no campo.
Exagero, dramatização ou sofrimento genuíno? Em caso de dúvida, o analista entra em cena. Munido de achismos e outros conceitos garimpados na melhor sociologia de botequim, procede então a uma exegese pedestre, emitindo em seguida o seu precário veredito sobre as condições lacrimais do atleta alvo da análise.
Outra função muito contemporânea e requisitada é a do ombudsman de memes, o camarada que fiscaliza se uma piada passou dos limites éticos e estéticos, invadindo o pantanoso terreno da avacalhação moral.
O meme do Cristiano “Sou Lindo” Ronaldo e seu filho com fome, por exemplo. Há quem veja na obsessiva reprodutibilidade de imagens de criador e criatura lusitanos a gratuita exposição de uma criança ao achincalhe precoce das redes sociais, o que pode se mostrar tóxico para o futuro de uma criança, ainda que filha do melhor e mais bem pago jogador do mundo.
Mas não para por aí. Não menos destacada, a tarefa do vira-latas fulltime está muito presente, sobremaneira em dias de jogos do Brasil, ainda mais se forem partidas disputadas contra nações de IDH mais alto e grau de escolaridade superior, como essas do norte europeu. Ou mesmo contra a Islândia, uma seleção formada somente atendentes de telemarketing, garçons e cineastas desempregados.
Nessas horas, o viralatismo tupiniquim atinge picos de celebração epifânica, entoando hinos de autodepreciação e louvor a nossa proeminente incapacidade de conciliar qualidade dos serviços públicos com bom futebol, confirmando a tese de que o hexa só é possível se continuarmos a ter péssimos hospitais e faculdades depauperadas.
Suprassumo da novidade destes tempos, o juiz tecnológico é mais uma dessas atividades espantosamente desconcertantes. Trata-se do adepto radical da videoarbitragem (VAR, da sigla em inglês). De tanto invocar o uso do VAR, primeiro para os lances decisivos e depois para os mais triviais de uma partida, esse usuário da ferramenta revolucionária passou a exigir a aplicação da câmera também para aclarar questões de natureza doméstica.
A fim de desatar um caso de ciúme, por exemplo, o requerente apela ao VAR, que entra em campo para dirimir aquela dúvida excruciante: afinal, a namorada ou o namorado estava olhando para outro ou outra na festa? É aí que a tecnologia se revela terrivelmente eficaz, eliminando qualquer zona cinzenta na vida amorosa de uma pessoa e jogando um facho de LED sobre os seus pecados, num processo de higienização moral irreversível.
Já existisse VAR no século XIX, dificilmente a literatura brasileira precisaria conviver com um de seus piores pesadelos: a dúvida se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Com a arbitragem de vídeo, esse impasse se resolveria em dois tempos. Bastaria que Machado de Assis, autor da obra, desenhasse no ar um quadrado com os dedos indicadores, dando a entender que iria acionar o juiz tecnológico.
Nesse gesto, o escritor não poria fim apenas à agonia de Bentinho, mas também a toneladas de estudos literários sobre a virtual pulada de cerca da boa moça.
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