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Pleonasmo é mais gostoso
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Pleonasmo é mais gostoso


Todo pleonasmo é gostoso. Subir pra cima, entrar pra dentro, sair pra fora, carícias íntimas e por aí vai. É como se a língua precisasse de outra língua com que dizer o que já é suficientemente claro, mas é melhor que se diga a dois. Aos pares. Aos grupos.


O Caetano cantando: quando te encarei frente a frente não vi o meu rosto... E a gente pensa no Caetano então não só encarando, mas encarando frente a frente. Porque encarar é olhar o outro, fixá-lo diante de si, mas não necessariamente estar perto, tê-lo a um palmo de distância. E encarar frente a frente é não fugir ao olhar desse outro, estar na mesma linha do campo visual, trazê-lo pra cá. Encarar é um modo de estar próximo.


Acho que o mesmo se passa com o “amigo pessoal”, que não é somente alguém que deixou a vasta galáxia dos colegas e passou a amigo, mas a amigo pessoal, ou seja, ascendeu a uma estatuto superior na escala de afetos humanos e agora integra o rol de amigos que ganharam uma estrelinha.


Um amigo pessoal é o amigo que ultrapassou a barreira do trabalho ou da faculdade, que frequenta a casa e já provou da comida da mãe do outro. O amigo pessoal é folgado, sim, e nisso está exatamente o segredo: temos muitos amigos, mas poucos assim pessoais e intransferíveis, com que se pode contar em situações-limite, como um prego de gasolina às três e pouco da manhã ou o compartilhamento de uma senha do Spotify.

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Carícias íntimas não foge à regra. Se é carícia, só pode ser íntima, certo? Nem sempre. Nós somos muito pouco rigorosos com os limites, as fronteiras, e temos apenas uma vaga noção de onde termina a abrangência de certas palavras. Amor, saudade, sexo, gozo, intimidade, público, privado. Sergio Buarque de Hollanda teria dito que somos permissivos com a língua se isso não soasse inadequado.


De modo que precisamos sentir pra entender. Todo mundo conhece alguém que é assim: eu preciso pegar pra saber. Ou encarar frente a frente pra compreender. Ou fazer uma carícia íntima pra avaliar se se ajusta uma à outra a mecânica específica de dois corpos diferentes.


Como se o brasileiro, festivo e em expansão, transferisse para a esfera do falar uma característica que é sobretudo física. A língua cotidiana então estabelece um vasto campo de nuances que as palavras em estado de dicionário não alcançam.


Daí que tudo se explicite no pleonasmo, um jeito excessivo e torto de deixar claro que fulano subiu mesmo, não era brincadeira, ou que sicrana realmente saiu – saiu tanto que acabou indo pra fora. Ou que alguém beijou um beijo ou sorriu um sorriso, pra ficar em dois pleonasmos buarquianos – não o Sergio, mas o Chico.


A carícia íntima, portanto, é mais que bem-querer. Às vezes muito mais, como parece estar ficando claro em Fortaleza. Quase eufemismo, outra figura de linguagem muito usada no dia a dia, ela diz muito sem precisar dizer tanto. É um jeito econômico e limpinho de se referir a um conteúdo interdito de maneira a não soar deselegante ou impróprio ou deseducado.


Um mascaramento do desejo pela palavra, poder-se-ia dizer, com a licença da mesóclise temerária e o perdão por alinhavar desejo e Temer na mesma frase.


O pleonasmo é como uma volta que damos no parafuso desse desejo cultivado em banho Maria. É mais como uma carícia íntima na língua do outro. Um entrar pra dentro quando a prudência e tudo em redor, inclusive os amigos pessoais, dizem pra gente sair pra fora.

 

Foto do Henrique Araújo

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