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Manipular caixas
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Manipular caixas


Abrir caixas é um exercício curioso. Dar com as coisas espalhadas pela casa e se perguntar se de dentro delas saltará alguma novidade, um livro antigo, uma roupa, uma carta sem remetente, um frasco de perfume pela metade, um pedaço de papel mantido num canto como retalho de vida e mapa de lugar nenhum.


Desembrulhar cada caixa vagarosamente e ir pescando volumes sem marcas ou manchados de dedos na lombada, cada um deles a rota de um caminho percorrido muito tempo atrás. Caixas velhas, caixas de compras do supermercado, algumas cheirando a produto de limpeza. Caixas novas como se saídas da loja. O odor que permanece. Tudo que decidimos guardar, tudo que resolvemos esquecer na caixa por meses e meses.

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Até que chega a hora de abri-las. Agora, por exemplo, tenho meia dúzia de caixas a minha frente. Olho pra elas, que olham de volta como um cão desconfiado. O que dizem? Caixas costumam guardar um certo silêncio protocolar. Ambíguas, às vezes oferecem uma brecha através da qual tentamos adivinhar o que vai dentro delas, mas só vemos uma nesga de qualquer coisa que pode ser uma revista, um pano de prato, um cabo de panela ou ainda a página 126 de um romance largado pela metade. Não porque fosse ruim, mas porque era muito bom.


Pode-se confiar numa caixa? Só até certo tempo, após o qual começam a abrir-se por conta própria, cedendo à umidade e à ação da noite e do dia, amoldando-se ao peso do que carregam. Porque uma das características da caixa é que nunca estão sozinhas. Vivem em pares ou trios, enxames ou cardumes.


O que não notamos muitas vezes é que caixas são perecíveis, estragam-se se expostas à intempérie, amassam e entortam como se aos poucos fossem ganhando uma forma meio humana, meio objeto. Não se decidem entre um estado e outro de vida, entre o ânimo e o desânimo, entre luz e sombra. Perfeitas na quadratura de caixa, escolhem a deformidade. Disformes, passam a desejar o paraíso perdido. Caixas sempre estão a meio caminho de.


Mas um dos seus grandes defeitos é a indiferença. Não dizem nada se de noite paramos ao lado e interrogamos um rótulo de biscoito ou o desenho de um creme dental que promete o sorriso mais branco. Esfinges modernas, conspiram entre si num mutismo de papelão que custamos a decifrar.


Apesar disso, por força do tempo e das mudanças, de vez em quando precisamos lidar com caixas e tudo que elas escondem e revelam. Por exemplo: acabo de encontrar um livro que procurava há meses e nem sabia que ainda exista. Por outro lado, também topei com um diário que mantive durante muitos anos. Outra caligrafia, outra vida, uma letra derreada à esquerda e fluida. Estava num canto, entre uma coleção de postais e um suporte de metal para globo terrestre. Repousava tranquilo à margem de qualquer paixão.


Daí que esvaziar caixas seja algo muito próximo de escrever ou de conversar ou estar uma tarde diante do mar. Por horas, ninguém diz nada, há apenas movimento de mãos e braços e costas que se curvam e olhos que procuram cobrir um vasto território de lembranças.


Entre a caixa e a gente, porém, se estabelece logo um diálogo no qual começa a desfilar uma procissão de coisas que acumulamos durante uma gorda fração dos dias. De repente, uma surpresa. Dentro dela, uma felicidade.


E é esse o ensinamento da caixa: há sempre algo dentro dela que precisamos tatear até encontrar, por difícil que seja.

 

Foto do Henrique Araújo

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