Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
A cada chacina, e dizer “a cada chacina” já é normalizar o anormal, sempre recebo essas listas como se fossem códigos de posturas que preciso seguir caso queira continuar vivo em Fortaleza. Procedimentos a serem adotados por cada cearense apavorado que procura uma saída individualmente para um terror coletivo. Resposta errada, claro.
Pior: resposta burra. Porque é ineficiente. Porque agrava o problema. Porque é a outra face da barbárie. Porque alimenta as facções. Porque é despolitizada. Porque elege políticos que faturam com as mortes e o medo. Porque consome recursos públicos e privados. Porque, na hora H, não salvará a sua vida.
A última listinha que recebi tinha 25 pontos, entre os quais destaco: parar a cinco metros do carro da frente, andar com vidros fechados, vasculhar quarteirões antes de embarcar, despedir-se dentro de casa, não sair depois das 22 horas, não frequentar lugares abertos, sempre suspeitar de tudo e de todos, evitar duplas em motos, escolher vias movimentadas, comprar carro blindado, frequentar estabelecimentos com câmeras e segurança próprias e por aí vai.
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Há dois aspectos a observar nessas listas. Um, elas são incompatíveis com a vida na Terra. Ou vivemos ou seguimos essas recomendações. As duas coisas ao mesmo tempo, impossível. Dois: são regras cujo denominador comum é o carro. Defendem uma cidadania automotiva. Não são feitas para quem anda a pé no José Walter ou de bicicleta na Parquelândia.
Talvez por isso elas tenham prosperado. São a bíblia dos desesperados, o alcorão da classe média enclausurada, o I Ching dos espiritualizados de ar-refrigerado, o Xvídeos dos viciados na própria integridade, o ioga para quem está rodeado de concertina. E, como cada uma dessas ferramentas, dependem fundamentalmente de uma coisa: a fé. A crença inabalável em que esse catálogo normativo para uma guerra urbana sem fronteiras há de funcionar quando precisarmos dele. Nessa nova religião, o veículo, vértice do altar, é a igreja – a medida de todas as coisas, o corpo e o espírito santo. O IPVA é um livro mais sagrado que o IPTU. E todo culto é celebrado indoor.
Apesar de enganosas, essas cartilhas fazem sucesso. Alguém poderia estar ganhando dinheiro com elas. Circulam pelo Whataspp e viralizam nos grupos de família, onde são recitadas nos almoços com primos e primas dividindo entre si histórias de assalto como contos de Natal. O medo reforçando-se como elo.
Como quase toda religião ou esquema de venda por pirâmide, porém, as listas têm uma função clara: elas fazem a gente de trouxa. E não apenas elas: os governos também fazem a gente de trouxa quando dizem que todas essas mortes são brigas de pirangueiros alimentadas por rivalidades juvenis. Principalmente: a gente se faz de trouxa por acreditar que possa haver uma resposta individual para a violência.
Mas se há algo que a chacina do Benfica ensina é o seguinte: não há muros entre os bairros. O Lagamar, o Bairro de Fátima e o Meireles estão ligados pela mesma tragédia. O enredo desse novo terrorismo não respeita território. Ele atravessa a cidade. A história dessas sete mortes passa por cada um desses lugares. As facções democratizaram a barbárie. Elas provaram que podem aterrorizar qualquer lugar, a qualquer hora. Ou entendemos isso ou continuaremos pagando caro por segurança e morrendo numa festa trucidados dentro da nossa própria Fortaleza.
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