Logo O POVO+
Memorabilia
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Memorabilia


Semana passada os móveis foram pro conserto e a sala ficou um tanto vazia. Quando chegava em casa, falava sozinho e as paredes respondiam. Sofá e cadeiras precisavam de cobertura nova, a antiga estava ou manchada ou desgastada ou ambas, com marcas de café e comida que alguém deixou escapar das mãos.


O homem que veio buscá-los disse que ficariam como novos, que aproveitaria a espuma e o encosto. E se sentou no sofá, estirando as pernas e deitando as costas, como a provar que era realmente confortável aquele conjunto desencontrado de sofá e cadeiras, nada rimando com nada.


Mas é assim que trabalham os carpinteiros. Precisam fazer acreditar que o que temos não é totalmente descartável, que aquele braço de sofá é sólido, que a espuma sobre a qual sentamos por anos e anos é das mais resistentes e nem se encontra mais hoje, de modo que será preciso substituí-la por outra, mas preservando parte do material antigo. Uma espuma diferente, apropriada ao tempo em que espumas não têm de durar uma ou duas gerações. Assim falou o mestre.

[QUOTE1]

No dia seguinte vieram dois homens para levar tudo embora. Um mais baixo, amorenado, gordinho, usando camisa e bermuda jeans, óculos e pochete. Disse: o sofá não passa na porta. Eu respondi: mas ele entrou por aqui, tem de passar. Ele insistiu: mas agora não passa mais.


Quis entender a lógica do homem, claro, que não era a minha. Pra mim, era indiscutível que, se o sofá havia entrado por uma brecha, ele obviamente conseguiria sair por ela. Tudo que entra, sai. A mesma porta que dá pra rua também dá pra cozinha ou pra sala. O mesmo vale pras janelas, que se abrem e se fecham ao tempo só. Ele concordou, talvez apenas por educação, mas logo voltou à carga inicial. Acrescentou ainda que fazia sentido o que eu dizia, mas o fato é que o sofá não passaria pela porta. E não passou mesmo, seja porque a porta havia encolhido, seja porque a peça havia engordado.


Passei a inventariar razões pra redução da porta ou o aumento do sofá. Não encontrei nada que justificasse o fenômeno, que considerei inexplicável. Já desparafusado e esquartejado no centro da sala, desceram com as partes do sofá nos ombros. Fizeram o mesmo com as cadeiras, que foram inteiras mesmo. Até que tudo ficou vazio. Fui trabalhar.


Quando voltei, estava sozinho. Falei às paredes, e elas responderam. A sala como uma caixa de ressonância, despida, os cômodos nus, os objetos retraídos e o piso estalando enquanto andava. Uma casa é como uma igreja: sua memorabilia é a prova de que o tempo passa. Sem objeto que envelheça, sem o sofá que se afunde e as cadeiras que amareleçam, o que resta é como um fio de voz que ecoa pra ninguém, como uma pregação sem rebanho.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?