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Brechó
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Brechó


Experimentar e usar uma roupa que não é a sua, vestir essa roupa estranha e levá-la a passeio. Ter outro cheiro e outra textura. Andar como se fosse um corpo alheio.


Só uma vez fui a um brechó. Pouco antes de viajar para um lugar muito longe, precisava de uma camisa de frio, uma que se parecesse comigo, que fosse minha e estivesse de acordo com meu tamanho. Não encontrei.


Todas as roupas ou eram largas demais ou muito curtas, nenhuma me cabia, nenhuma ao agrado. Mas levei uma blusa assim mesmo. Em casa, de frente ao espelho, me vesti. Parecia outro. Tinha outro passado e outro futuro. Uma outra hipótese de vida adiante.


Deixei um tempo no guarda-roupa para que fosse tomando o gosto das outras peças, todas velhas, todas gastas de cinco ou mais anos antes. Todas pejadas de histórias, roupas como essas que brincamos dizendo que sabem deslocar-se sozinhas pelas ruas, que vão aonde desejam. Como se tivessem vida própria, gostos e feitio de gente.

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Como esta camisa preta de mangas longas que uso agora. Está cinza e se descostura em alguns pontos, mas já foi muito escura e tinha cheiro de novidade. Era bonita, gostava de vesti-la quase sempre, muita gente dizia que ficava bem e era assim que me sentia ao usá-la. Como se nada pesasse ou fizesse falta. Era uma camisa que me abraçava.


Desgastou-se com o tempo, ficou como velha e já não combina com os ambientes fora da casa. Quando saímos, dizem que é uma roupa surrada, fazem chacota. Gracejam: convém não estar assim tão desleixado no trabalho ou numa festa. Concordo com a cabeça, sei que é isso mesmo. O novo, sempre o novo. O velho, sempre o velho.


Hoje raramente estamos juntos, mas às vezes acontece de precisar da ajuda de uma roupa que já me conhece e com a qual não preciso trocar mais que duas palavras para que entenda tudo. Uma roupa íntima sem ser de baixo. Íntima porque temos entre nós uma conversa que dispensa qualquer palavra. Um entendimento assim de muito tempo. Coisa de quem divide o mesmo corpo, o mesmo tempo, o mesmo espaço.


Então borrifo água, engomo, dobro as mangas, exatamente como fazia antigamente. Trato com zelo. E penso que podia ser a camisa de outra pessoa, uma peça encontrada num brechó, uma que olharia antes de passar no caixa.


Quanto custa esta roupa?, eu perguntaria, sem perceber que o preço de tudo já vai embutido na própria matéria. Sem entender que levamos em viagem coisas que sequer sabemos.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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