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Um cheiro
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Um cheiro


Tenho pensado no cheiro, não o odor, mas o cheiro mesmo, esse que damos ou pedimos a outra pessoa. “Vem cá, me dá um cheiro.” Ou “deixa eu te dar só um cheiro, por favor”.


O cheiro é a medida última do bem-querer. É também cartão de visitas dos mais afoitos. Unidade mínima, indivisível, o próton e o elétron do amor. Quando dizemos cheiro, falamos dessa troca pouca de carinhos, de desejo feito todo carência: não beijar, não abraçar, mas cheirar. Ao menos isso. Por favor. Pedido feito súplica. Falta e excesso ao mesmo tempo.


Cheiro é coisa de quase pedintes, desvalidos de saudade, pessoas postas em fuga de um afeto. Não é aperto de mãos, tampouco um carinho gratuito - é cheiro.


Gesto intraduzível na gramática amorosa. Quando cheirar é mais que cheiro? Quando é apenas isto e não aquilo? Cheiramos amigos, mas também namorados. Cheiramos pai e mãe, mas também os bichos de casa. Cheiramos o sapato novo e a roupa perfumada, mas também o cangote. Cheiramos o próprio cheiro depois de um encontro. Cheirar é ato universal. Dúbio, ambíguo como nenhum outro no repertório de pequenos prazeres.


Abraços são mais transparentes. Beijos, nem se fala. Um abraço frouxo e distanciado fala por si. Um beijo frio, triscado, também. E o seu contrário: abraço apertado, demorado, e beijo agoniado, revoltoso, desses que jamais esperam nem pedem licença.


Mas e o cheiro? É um travestido, um resvaladiço. Não sabemos o que se passa na cabeça de quem vai cheirando os outros ou de quem nos cheira. Quererá também o mesmo que eu? Terá no corpo a mesma pressa de ir além?


De tanto pensar, acabei por chegar aonde sempre chego, que é imaginar que tudo é coisa nossa, das menores às maiores. Num lugar só de mulheres, nasci cheirando. Daí a achar que ser cearense era cheirar mais que outra coisa. Mais que pegar, inclusive. Mas cheiro não é coisa qualquer que já nascemos sabendo. Temos de ensinar. Às vezes peço um cheiro a minha filha, que aproxima o nariz da minha barba e aspira demoradamente. Depois diz: teu cheiro é bom, pai. É cheiro de fato, desses de sentir o outro pelas ventas. Nada mais gostoso do que supor uma presença entrando pelas narinas e lá permanecendo o tempo que for. Trago até hoje cheiro de murici do Mercado São Sebastião dos meus cinco anos.


Lembro do cheiro do pai e da mãe, mas cheiro é mais que isso. A meio caminho do beijo, um ensaio de algo mais. Um projeto de qualquer coisa. Um exercício de quem sabe.


Não sei por que cheiramos tanto. Ou até sei: pra reter. Cheiramos pra ter sempre outra pessoa consigo. Como se a memória do outro tivesse essa qualidade, como se avivasse na gente a saudade. Cheiramos pra estarmos sempre acompanhados.


Quando alguém pedir, saibam disso. Que cheiro é tipo um 3x4 que os enamorados ou os muito amigos guardavam na carteira ou dentro da bolsa junto com os lápis e as canetas. Que é um jeito bom de transportar nossas querenças. Que é diferente de tocar a mão ou atar com os braços num enlace. É cheiro. Coisa como copo d’água: não se nega.

 

Foto do Henrique Araújo

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