Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
A esta altura, todos já devem ter visto a foto do menino na praia durante a passagem do réveillon em Copacabana, no Rio. A imagem, feita pelo fotógrafo Lucas Landau, correu o Brasil numa disputa de interpretação. Oficialmente, é nossa primeira arenga coletiva. Postas de lado as diatribes ideológicas e as picuinhas de redes sociais, a questão de fundo é: o que vemos, o que nos olha?
Não casualmente, esse é o título de um dos livros mais importantes de Georges Didi-Huberman. Nele, o filósofo francês investiga os regimes do olhar e as propriedades do objeto, que nunca é a matéria passiva sobre a qual se volta uma força – o ato de enxergar é, para ele, um duplo reconhecimento: o de que vemos, mas também o de que há um outro que devolve esse olhar.
Noutra obra também famosa, o escritor e ensaísta John Berger arrisca uma definição: “O que faz da fotografia uma invenção estranha – com consequências imprevisíveis – é que suas matérias-primas são a luz e o tempo”. Ambos, Berger e Huberman, falam sobre a mesma dificuldade: é impossível exercer controle sobre o que é visto; improvável domesticar a visão.
O menino na praia é espelho? É objeto? É sujeito? É vítima? Experimentamos dualidades. Pensamos por pares ordenados como se precisássemos escolher: ou isto ou aquilo.
A aura da imagem, para usar uma expressão de Walter Benjamin segundo a qual a fotografia é uma trama de espaço e tempo, interroga mais que responde. É uma pedra lançada ao abismo mais que cascalho flutuando em superfície calma. Tentar flagrar essa aura é surpreender um país na urgência de construir para si uma nova autoimagem – mas qual?
Na fotografia de Landau, duas narrativas clássicas se confrontam, ambas com poder de verdade: a do subalterno (menino negro) exposto em condições de vulnerabilidade, empacotado visualmente como autêntico subproduto da segregação num dos instantes – o instante certo – de passagem (de um ano para outro, mas também da noite para a luz, com a queima dos fogos). E, em sentido diverso, a do sujeito (um menino empoderado, por assim dizer) que avança ao mar para ter para si o céu iluminado da praia enquanto, atrás dele, grupos de pessoas (brancas vestidas de branco) confraternizam e se fotografam de costas para os fogos que pipocam acima das suas cabeças.
As interpretações são conflitantes, mas não excludentes: na primeira, o garoto despossuído e objetificado de quem não conhecemos quase nada; na segunda, um anônimo ator de vontade que transgride a visão que lhe dirigem – e sua estupefação, os braços cruzados ante o frio e a água pelas canelas são mais como índices de coragem do que de fraqueza. A escolha por uma ou outra versão do real diz mais sobre como nos relacionamos com o alheio do que sobre o outro em si. A mesma imagem são duas. São muitas. E esse talvez seja o seu ensinamento.
Em testemunho no Facebook, o autor da foto – haverá de fato uma autoria quando se fala dela? – afirma que a verdade do registro fotográfico, se é que existe uma, está num lugar que ele não conhece. De algum modo, o menino na praia abriu um limiar para cada um de nós. Como no cinema de Kleber Mendonça Filho, ele é uma força que irrompe do passado, mas também uma hipótese de futuro.
Num de seus ensaios sobre as ambiguidades visuais, John Berger escreve que, “entre o momento registrado e o momento presente em que se olha a fotografia, existe um abismo”. Hoje, o Brasil se projeta em tudo que vê (até mesmo na bunda), mas esse espelho não faz retornar senão um borrão à sombra do qual precisamos ainda descobrir que país seremos amanhã.
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