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Embarcação
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

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Voltei a escrever num caderno, caneta e papel. Letra e tempo. Preciso esperar que minha mão alcance o pensamento, que está à frente. Penso ligeiro e me demoro a dar comigo mesmo. Quase me atropelo, quase nos esbarramos. E, quando me encontro, quando nos encontro, estamos em ritmos diferentes, modos diferentes de sentir o sentido.


É aí que paro e penso no tempo de que precisamos para que algo aconteça. A escrita se efetive. O traço se firme na mão e a mão guie com segurança a um lugar mais seguro. Lembro da metamorfose da letra na escola: derreada à esquerda no começo, à direita depois e empertigada adiante. Variava como o corte de cabelo, ganhava camadas de uma vida ainda nova. Experimentei todas as declinações e ângulos. A letra era chave para tudo. Aos poucos, o gosto de manuscrever foi se perdendo.


Mas agora tudo vai em compasso. Caneta e papel. Espero, a mão espera. Reescrever a letra é como reaprender a desenhar o próprio tempo. Vamos andando ora acelerado, ora mais lentamente, como numa dança, uma coreografia. É um exercício de respiração pela palavra. Escrevo, leio, escrevo. Deixo pra trás, levo adiante, carrego e solto, apanho e deixo cair. A letra sempre tão pesada, a letra sempre tão leve. A letra sempre tão diversa do que costumava ser.


Reescrever a letra é como reaprender a desenhar o próprio tempo. É um exercício de respiração pela palavra


Tinha perdido esse costume de falar aos bocados. Era apenas o aperreio da digitação, e na digitação a mão se desacostuma a batucar sozinha as palavras. No computador, as mãos dividem tudo entre si, todos os dedos empenhados na tarefa difícil de dizer.

 

E dizer tem sido cada vez mais custoso, cada vez mais necessário.

Como fazemos para dizer hoje em dia? Anoto a pergunta no bloco. A quem enviamos o dito? É outra pergunta. De repente, tenho uma lista delas, todas sem resposta.


Dizer com duas mãos, com duas línguas, dizer com quatro mãos.

Voltar a falar um alfabeto esquecido, dizer em ritmo natural, dizer sem sofrimento, dizer mais baixo e devagar. Dizer como exercício de bater as pernas ou de flutuar na água. Dizer como quem é arrastado por uma onda. Dizer o remoto, esperar e voltar, dizer em tempos diferentes. Dizer o perto, o possível, o imediato. Dizer o longe, o impossível, o que ficou pra depois.


Agora estou de volta ao modo manual, impondo a mim mesmo um tipo de espera. Espero por mim enquanto escrevo, volto para me alcançar, digo para que corra ou siga em frente ou avance ou recue.

Lanço conselhos como garrafas ao mar e tento agarrar a sombra do entrevejo. Como os barcos de papel que jogamos na rua em dias de chuva. Embarcações que afundam e desaparecem.


Tudo isso a escrita de uma mão só precipita. Tudo isso o tempo de uma mão instaura. Dizer no papel, em caneta e traço, é reler vagarosamente cada palavra e esperar que seu peso e sentido criem raízes. Mais do que nunca, quero agora as palavras fundas. Mais do que nunca, queria dizer nesse tempo mais largo durante o qual não espero que chegue ao final. Dizer por dizer.

Foto do Henrique Araújo

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