Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Impossível escrever senão sobre Anitta. A bunda e sua celulite, a placa politizada do mototáxi, a marca de biquíni e suas circunstâncias sociológicas, a laje e seu lugar na cidade, o corpo feminino isolado com fita isolante, as marcas de brasilidade e a tradição interpretativa do País.
Porque é disso que se trata: bunda-metonímia. O Sérgio Buarque, que não aparece no videoclipe, teria gostado de Vai malandra, mesmo sem a vírgula separando o vocativo. Por quê? Porque ilustra à perfeição o seu Raízes do Brasil.
O pai do Chico, que também não está no novo trabalho da funkeira carioca, escreveu que o brasileiro é um tipo cordial que não se dá muito bem com os ritos da civilidade. Daí que, entre nós, impere esse fundo emotivo a reger as condutas sociais, e mesmo a religião seja carnavalizada. Pra gente, é mais importante o laço familiar, a pessoalidade e a consanguinidade.
Ora, que tipo social concentra tudo isso? O malandro. Espécie de decalque do brasileiro, sobretudo do carioca, o malandro é um drible na norma. É o nexo entre o Carnaval e o Estado. O elo perdido entre nosso iberismo temperado com indianismo e o mundo inflexível do rito europeu, calcado em procedimentos cuja finalidade é traçar uma fronteira exata entre público e privado. Ou entre a casa e a rua, como analisa Roberto DaMatta em Carnavais, malandros e heróis.
O malandro é transgressão, portanto. Está para os arquétipos de rigor como Garrincha para os zagueiros. Não à toa, uma das qualidades do futebol nacional reside precisamente na capacidade de ludibriar os adversários, seja de que maneira for. Num esporte britânico marcado pela rigidez das regras e conformado ao espaço de quatro linhas, o brasileiro tropicalizou - mais que isso, devorou, no sentido antropofágico de Oswald de Andrade. Pelé, Romário e Renato Gaúcho (o gol de barriga é exemplo claro de um certo caráter local) são mostras da vitória da criatividade sobre a regra. Aqui, nosso corpo é espírito e vice-versa.
A malandra de Anitta, então, é um drible dentro do drible, um desvio no desvio, uma quebra na quebra. Por isso o clipe foi gravado na quebrada do Vidigal, com mulheres de todo tipo, velhas e gordas, magras e peitudas. E homens também, todos com pouca roupa, rebolando ao som de funk, reiterando o clichê gringo de que somos um pouco ainda como povos incivilizados: despidos, sem fé e sem lei, movidos apenas por uma lascívia atávica.
Há nessa ética malandra da cantora de 24 anos, porém, um pulo do gato: como na metáfora oswaldiana, Anitta mastiga o bispo Sardinha. Hiperssexualiza não para objetificar, mas para assumir o poder sobre como os outros a olham - não é você que decide o que vê, sou eu que escolho o que mostrar. E ela mostra muito, mas, principalmente, mostra o que quer.
Cartão de visitas da música, a bunda com celulite é a tradução disso.
Onde querem o veto, Anitta oferece o corpo real. É como se dissesse: temos direito a tudo, inclusive a gozar com o clichê estrangeiro. E é aí que a funkeira encontra o sociólogo. Contra todo rigorismo e censura, tanto do machismo quanto do feminismo, ela responde da mesma maneira: na malandragem.
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