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Uma conversa doméstica
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Uma conversa doméstica


Às vezes nos surpreende que a vida possa ser tão simples, um suceder de dias e noites e, entre as horas, umas poucas ou muitas atividades com que se ocupar, tarefas domésticas, quintais e viagens, umas dores de cabeça para temperar tudo, filhos e futuro a interromper o sono e arrancar o sossego, amores que se partem, laços que se refazem, saudades que não arredam pé.


Doenças que chegam sem avisar, agonias que atravessam a madrugada e lembranças que marcam o corpo, demorando-se mais que tudo. Vínculos que se renovam e pontes que se desfazem, por sólidas que parecessem. O imprevisto de tudo de repente tão visível, a fragilidade tão exposta, a simplicidade tão latente porque era como pano esticado sobre o qual dispomos a louça pesada de todo dia muito mais por fé que por confiança.


Tudo em precário equilíbrio de lugar e tempo, um cotidiano de pequenas escolhas levando a estradas que, uma hora ou outra, acabam por se bifurcar. Travestimos arbítrio por destino, gostamos de imaginar a vida já escrita por medo de nos confrontarmos com o branco e o vasto vazio de tudo que há por vir.


Os anos correm, pares e também ímpares, alguns mais simpáticos e felizes que outros, mais azedos e ferozes que outros. E junto passam também as cidades que visitamos, ruas e pessoas que conhecemos, lugares onde deixamos parte de nossa história, onde colhemos mais do que entregamos, de onde levamos apenas o cheiro, lembranças e fotografias, onde vivemos perdição e descobrimos amor. Nisso está uma simplicidade possível.


Mas às vezes também dizemos que tudo é simples mais como exercício de autoconvencimento, um modo de chegarmos até nós mesmos, de nos alcançarmos e estarmos próximos uns dos outros. Digo que é fácil, e automaticamente acredito que todas as dificuldades são imaginárias, as fortificações que construímos resistem a chuva e vento, as fundações suportam tremores de qualquer natureza e os descaminhos foram escolhas e não desacertos que resultaram dos inúmeros erros que cometemos.


No mais das vezes, porém, a gente se engana, para o bem e para o mal. A gente se engana quando crê que tudo é difícil, intransponível, e também quando acha que a travessia transcorrerá em céu de brigadeiro, tudo se abrirá ao sorriso voluntarioso.


A gente se engana por ingenuidade, mas também por omissão. Engana-se por enxergar muito e por enxergar pouco. Engana-se por acreditar que está sempre certo e por supor que estejamos errados. Por tocarmos ou evitarmos o toque, por medo dos extremos ou por excesso de comedimento, por guardarmos mais que mostramos, por exibirmos antes da hora ou por esperarmos além da conta, quando tudo passa a cavalo de galope.

 

No fundo, a gente quer escapar da vertigem de olhar o tempo fazendo-se no exato instante em que o olhamos e, nele, ver refletidas nossas escolhas, suas consequências e aonde nos levou cada uma delas. Mas é precisamente aí que está a simplicidade: aceitar limites, reconhecer falhas, conversar intimamente, ouvir o silêncio como uma boa resposta, cultivar o pequeno como uma grandeza, acreditar na força corretiva do tempo e comemorar certos fracassos, pois talvez nos salvem, talvez sejam mesmo o melhor que possamos fazer naquele momento.

Foto do Henrique Araújo

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