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Os mortos não falam
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Os mortos não falam


A gente tem dimensão de que a coisa tá feia na cidade quando nem a vendedora da Ban Ban Calçados está a salvo e qualquer ajuntamento de três ou mais pessoas é filmado e viraliza como arrastão. Uma família saindo do shopping: arrastão. Quatro casais deixando o motel: arrastão. Cinco vereadores aprovando emendas por baixo dos panos para beneficiar grupos empresariais: arrastão. E por aí vai.


Nesta semana, duas notícias trataram de violência em Fortaleza. Uma dando conta de que as mortes serão agora analisadas dentro do escopo da saúde pública. Não era sem tempo. Afinal, já tentamos de tudo, do “taser” da Guarda Municipal ao PM do Ronda dançando break nas escolas, da “pax” informal selada com as facções à contratação de um herói de filme de ação para comandar a Segurança. E, como nada funcionasse, apertamos o botão do pânico e chamamos o Moroni para combater a onda de criminalidade.


Claro que chamar de onda é uma onda mesmo. Porque, ao pé da letra, onda é algo que vem e passa. A onda da bermuda feminina com bolsos pra fora. A onda da mecha azul no cabelo. A onda do “hand spinner”. A onda da tatuagem de tribal. A onda da oposição a Camilo Santana na Assembleia Legislativa. Em todos esses casos, a característica que sobressai é a da efemeridade.


Mas o problema é que a onda de violência não passou. E essa é a segunda notícia sobre a criminalidade na capital cearense: o ano pode terminar com um recorde histórico de mortes, a maioria de pessoas entre 12 e 24 anos. Em Fortaleza, apenas no mês de outubro, o número de assassinatos aumentou 140% em comparação com o mesmo período do ano passado. O governo contemporiza: 61% das vítimas tinham antecedentes criminais e 82% eram envolvidas com drogas. Uma outra leitura é possível: crianças e jovens pobres se envolvem cada vez mais cedo numa guerra de tráfico e seus corpos se amontoam como estatística oficial, que ignora seus rostos, seus nomes, suas histórias. Esses mortos não falam.


Na última segunda-feira, um pirangueiro, achando-se sem um puto no bolso na véspera do feriado da proclamação da República, houve por bem invadir uma loja popular no coração da Praça do Ferreira e fazer a vendedora de refém. Reparem na cena, que paralisou a cidade. É o retrato de uma cearensidade encalacrada.


De chinelo de dedo e agasalho Adidas, o bandido, talvez um criminoso avulso não associado a facções - um “self made man” do crime –, apontava uma arma para a cabeça da vendedora. Fardada com o laranja já conhecido do comércio, a mulher desesperava. Por 40 minutos, empoleirado na marquise do Ponto da Moda, outra marca famosa por seus preços baixos, o rapaz negociou com policiais militares. Felizmente, a mulher foi liberada e o cara, preso.


Em algumas semanas estaremos comemorando o Natal de Luz na mesma Praça do Ferreira. Com neve artificial e sem os moradores de rua, que anualmente são escorraçados do logradouro pouco antes das festas de fim de ano para que as famílias cearenses sintam-se à vontade no espaço. Para onde vão as pessoas que não foram convidadas pra celebração? Ninguém sabe. Mas, tão logo passe o Natal, elas voltam. Tornam a armar seus barracos e a trepar seus molambos entre os galhos das poucas árvores que ainda restam no cartão postal de uma cidade que só se espanta quando a morte bate na porta dos seus bairros mais ricos.


Foto do Henrique Araújo

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