Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Não sei se você sabe, leitor, mas Fortaleza é uma cidade onde faz muito sol. Daí que cedo aprendemos o valor da sombra. Numa casa, as horas mais valiosas são as que projetam sombra num alpendre ou na área. As de sol são proibidas à brincadeira, e as mães só permitem sair à tardinha, quando viramos pra elas e perguntamos se o sol já esfriou.
Esperamos ansiosamente que o sol esfrie. É quando sentimos que chegou a nossa vez. Para o nativo, achar um lugar à sombra é sorte maior do que encontrar moeda de um real na calçada. É sinal inequívoco de que o dia será bom. Afinal, estamos à sombra, e não há no mundo uma sensação mais agradável.
Noutros lugares, as pessoas dizem “vão com Deus” ou “até a próxima” quando se despedem. Aqui dizemos “vão pela sombra”. E acrescentamos: “cuidado”, como se precisássemos alertar para um perigo cuja origem não sabemos bem qual é, mas não custa nada avisar. Assim, nossa preocupação número 1 é evitar o sol de meio-dia ou duas da tarde e, depois, não ser assaltado numa esquina. Se chegarmos em casa com todos os pertences e a pele intacta, seremos pessoas abençoadas.
E isso explica por que, num ônibus vazio, a primeira disputa que se trava não é pelo lugar mais seguro, mas pela sombra. Do mesmo modo, numa parada de coletivos, a nesga de sombra produzida pelo poste é dividida salomonicamente. Há um ditado que diz que o mineiro só é solidário no câncer. Parafraseando, acho que o cearense só é solidário na sombra.
Entre nós, é famosa aquela fotografia de PMs debaixo da sombra de uma árvore durante a desocupação do Cocó, num protesto que tentava evitar o corte de árvores para a construção de viadutos. Enquanto os manifestantes ofereciam uma trégua, os policiais não se abrigaram no supermercado ou no shopping, mas na sombra de um pé de pau.
E dizer pé de pau já é traço do desprestígio que dispensamos ao verde. Para a planta, falamos mato. Para a árvore, pé de pau. O mato é espaço de despejo do inservível. O pé de pau, um objeto que auxilia em atividades como armar uma rede ou prender o fio no qual as roupas se estendem. Não têm valor por si mesmos.
Desejamos as horas de sombra, mas temos o péssimo hábito de não cultivarmos a árvore. Esperamos que esteja lá, como um golpe de sorte ou uma dádiva da natureza. Mas, no que depender de nós, lhufas, nada, zero. A sombra não é da nossa conta.
Se podemos cortar, não podamos. E, se podamos, fazemos isso mais ou menos como os pais se livravam dos cabelos dos filhos quando estavam piolhentos: mandavam deitar tudo fora, deixando rente ao coco.
Em nossas ruas, mal uma planta ganha corpo e sua copa se espraia, o cearense sente uma comichão: é preciso cortar. E não são poucas as querelas de vizinhos por causa de árvores que invadem o espaço aéreo da casa alheia. Preferimos o sol a passar uma vassoura no terreiro todos os dias.
Vale para o indivíduo, mas vale principalmente para a Prefeitura. Nesta semana, podaram os coqueiros da Praia de Iracema, que foram reduzidos a nada. Faz um sol brabo em novembro e dezembro, mas eles estão pelados. Ali, naquele pedaço da cidade, o cearense não pode recomendar a ninguém que vá pela sombra, apenas que tenha cuidado.
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