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Assinado: o crime
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Assinado: o crime


O crime no Ceará agora é uma grife que atende pelo nome de “Crime”. Não é nada divertido nem trivial pensar no crime como essa entidade escondida atrás de uma letra, um pseudônimo, um sujeito oculto, uma assinatura pintada no muro de uma casa na esquina. Como uma empresa de telefonia, a gente nunca consegue falar diretamente com o crime. É o crime que fala com a gente.


O lado bom é que ele finalmente assumiu uma autoria. Uns meses atrás, o Estado até negava. Dizia que era coisa de pichadores na tentativa de diluir o protagonismo do crime, atribuindo a redução das mortes ao sucesso das políticas de segurança. Mas depois a guerra estourou e o crime, que deve ter uma boa assessoria de imprensa, pensou: é melhor a gente começar a assinar nossa obra. Mas que nome usariam?, perguntaram-se os criminosos.


Então os cabeças do banditismo organizaram um colóquio num café ou numa praça de alimentação, que é onde nascem as boas ideias na capital cearense. E lá bolaram o seu nome fantasia: resolveram apostar na contraintuitiva ideia de assinar apenas como Crime. Nenhuma perfumaria ou confeito. Exatamente como se um motel se intitulasse Amor ou um cemitério se autonomeasse Morte, o crime passou a se chamar de Crime. Foi um sucesso. Afinal, como todos sabem, se tem uma coisa que vem funcionando a contento no Ceará é a máquina do crime.


E pensar que os meliantes-empreendedores lograram tudo isso sem um relações-públicas, lobby no legislativo ou incentivo fiscal do governo. Num arroubo de liberalismo, multiplicaram-se apenas no boca a boca, sem verba pública, a partir de uma estratégia rudimentar de comunicação, para a qual colaborou decisivamente a desculpa esfarrapada dos gestores de que não havia crime.


Ora, do mesmo jeito que muita gente insiste em dizer que não há racismo ou homofobia no Brasil, o crime tirou proveito de sua invisibilidade e explodiu no vácuo da sua própria negação. Hoje, uma mensagem do crime pintada na rua tem alcance exponencial, mais até do que muita postagem patrocinada no Facebook. Tipo essas que vemos espalhando o medo em recados sumários: baixem o vidro do carro e tirem o capacete. Assinado: o crime.


Mas o que é mesmo o crime? Antes achava que era só assalto, roubo, permissão pra construir prédios de 40 andares à beira mar e outras pirangagens dessa natureza. Mas o conceito estreitou-se. Agora, crime é sobretudo nudez e corrupção, que às vezes até se confundem, havendo quem fale em corrupção da nudez ou nudez da corrupção, duas expressões que traduzem o País sob Temer e companhia.


Enquanto chafurdamos à procura do nome certo para o que deveria estar dito às claras, como autoritarismo, moralismo e preconceito, o crime encontra as suas próprias respostas. E, na contramão do excesso de problematização, as facções resolvem simplificar. Crime é tudo aquilo que se chame de crime. Ponto.


Talvez por isso tenham adotado palavrinha tão em voga para se referirem ao seu trabalho, que se espalha a olhos vistos. É como se mandassem um recado aos ministros flagrados com malas de dinheiro e ao presidente que compra votos pra barrar denúncia de corrupção: se vocês têm vergonha de assumir o que fazem, a gente não tem. Assinado: o Crime.


Foto do Henrique Araújo

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