Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Carta é procurar uma palavra certa para o incerto, uma que flutue porque os dias correm e o ano termina. Uma palavra que fique, que diga boa noite e boa tarde e depois converse amenidades enquanto a gente prepara o café.
E o melhor expediente pra dizer o que só se diz à meia voz continua sendo uma carta. Porque diz sem alarde. Outro dia li que mesmo as mensagens eletrônicas amorosas correm risco de extinção. Ninguém envia mais e-mails com parágrafos de declaração. O amor agora é sequer telegráfico, é instantâneo. Consome-se, e só.
Por isso uma carta. Porque fixa mesmo o que deveria se extraviar e manifesta o que aprendemos a deixar em suspenso. Dizem que carta é entrelinha, mas carta sublinha. Carta não segreda, carta revela. Carta não se envia, mas recebe.
Carta é na contramão. Requer parar tudo que se está fazendo e reparar no miúdo. E depois assentar os óculos e firmar a vista nesse abismo que é a carta. E em seguida ler. Dedicar um tempo ao gratuito. Percorrer toda a linha, talvez saltando frases inteiras para chegar ao final, sem garantias de que restará uma palavra sequer de pé. E deparar não com o fim, mas com reinício. Carta é sempre ao avesso, sempre parcial, sempre um ir ao encontro.
Também é coisa sem préstimo, feita pra se jogar fora, despedaçar, uma façanha de inútil dedicação, um modo de perder a si e ao outro. Então juntamos, fazemos um bolo de cartas e depois atiramos tudo ao lixo para que outro se encarregue de apanhar e ler e depois espalhar ou esquecer no banco de uma parada de ônibus.
Carta é som que fale do objeto ou do sentimento o que não sabemos ainda e tateamos porque precisamos encontrar urgentemente o que for, uma fotografia, uma música, uma outra carta.
Carta é uma obscenidade porque nela nos despimos e nus falamos mais do que vestidos. É pornográfica porque os fluidos se misturam e tudo que é reto se dobra. É crueldade porque nela mentira e verdade se conjugam ao mesmo tempo.
Carta é uma urgência e um gozo, bater na porta e correr, saltar e cair, não ficar pra ver o que é e ainda assim resolver que fica. É uma investigação, um inquérito, um filme policial “noir” em que um casal se conhece num balcão do bar à luz azulada e depois se perde na rua sob a chuva pra se reencontrar horas depois noutra esquina, noutro filme.
Cartear é nomear, e nomear é próprio do amor, mas nem sempre as coisas que amamos têm nome, tampouco amamos as que escrevemos. É um caso típico de acaso. É uma sorte e uma desgraça. É um jogo sem regras.
Cartas são coleções de letras e frases dispostas em fila indiana andando sabe-se deus pra onde, sem hora nem destino, avançando e recuando quando chegam à margem do papel, que é o precipício de todo desejo.
Cartas são uma maneira esquisita de fazer o que faríamos se precisássemos escrever uma carta. E sempre há essa hora do dia ou da noite em que nada nem ninguém consola, exceto a carta.
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