Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Passei pelo letreiro e lembrei que é bem ali onde as turmas de formandos se reúnem para fazer fotografias segurando os nomes dos cursos de graduação e o ano em que estão concluindo. É um lugar apropriado para fincar a bandeira do marco, estabelecer um ponto zero e começar seja lá o que for, desde que represente uma virada na sua vida, uma página que fica pra trás ou coisa que o valha.
Pois foi exatamente lá, perto da estátua da Iracema, que apareceu da noite pro dia o nome CEARÁ com letras coloridas dispostas como numa lâmina de apresentação de Power Point dizendo coisas óbvias. Caso alguém vá passando e não tenha tanta certeza de onde está, um turista ou mesmo um nativo desavisado, a placa cuida em informar: CEARÁ.
Letrinhas eufóricas, dançantes, como a explicitar cabalmente nossa vocação para a alegria. Um reconhecimento tácito de nossa felicidade. Um clichê tipográfico e afetivo. E enterrado na praia, como uma placa de vende-se em Jeri ou um anúncio de construtora nas dunas do Cocó.
Letreiro estranho. O nome inscrito na orla pede que a gente olhe pra ele com simpatia, uma generosidade que é a base desse sentimento por trás da pertença. Estamos no Ceará. Terra de águas verdes e areia branca, gente hospitaleira e comida farta. Lugar também de números escandalosos de homicídios, mas não convém amedrontar o visitante. É pra esse letreiro que olho e sinto o mesmo quando vejo uma dessas carinhas sorrindo: você está sendo filmado.
No fundo, porém, até gosto das letras. Têm patrocínio privado, é verdade, mas gosto dessa tentativa canhestra de criar vínculos na marra, à força, como quase tudo por aqui. Gosto apesar de saber que nossas raízes são aéreas e tudo que é antigo e portanto patrimônio não resiste à ação do poder. Gosto por gostar, gosto por insistência, gosto por achar que me salvo gostando. Xingo o letreiro, mas gosto como gosto da própria cidade. Gosto como gosto dos canos enferrujados e esquecidos no aterrinho. Como gosto do Mincharia e do piano branco.
Gosto inclusive da ironia que é o fato de o letreiro e as dunas ocuparem posições diametralmente opostas no espectro de interesse dos cearenses na atualidade. Enquanto o CEARÁ surge espalhafatoso no cartão-postal litorâneo para demarcar ainda mais no imaginário do turista a identidade da praia, a lei que protegia o ecossistema no Cocó foi revogada pelos vereadores. Tudo ao mesmo tempo. O letreiro aparece, as dunas desaparecem. Um tem destaque patrocínio de jornal, outra é ignorada. Um é iluminado, o outro escondido.
Na primeira vez que vi as letras garrafais quis emburrar, mas segui mais uns passos e acabei simpatizando. É tão brega e tão nosso, assim como os trenzinhos da alegria no circuito da Beira-Mar com a trupe de heróis esfarrapados escorregando de barriga no parapeito da fachada do hotel. Assim como o quebra-coco. Assim como a avacalhação com o que temos de mais precioso. À tardinha, a luz laranja do fim de tarde banha o CEARÁ grande. É um espetáculo de encher os olhos. Às margens do Pajeú eu sento e choro.
O nativo vive num chiaroscuro de felicidade e tristeza, lusco-fusco de saber-se incapaz e potente, no limiar da esperança e da melancolia. Uma mistura de coisas que fazem desta a terra das oportunidades, quase todas perdidas.
Claro que, depois desse périplo pela orla, só podia terminar minha caminhada numa 50 Sabores. Pedi sorvete de tangerina e sorri. É das poucas coisas que ainda fazem rir: lembrar do gosto do sorvete de tangerina.
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