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O Fenômeno
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O Fenômeno


Eu queria ter visto o fenômeno mas não pude. Estava no trabalho e dele vi apenas o que me disseram, o sol reconstituído por aplausos de todos que foram até a praia sentar na areia e mais uma vez esperar que algo acontecesse.


E aconteceu. De tardinha, ali reunidos, essa luz ainda mais alaranjada, o sol encobriu-se, coando uma luminosidade que já é bonita quando a semana carece de eclipses e a gente para na soleira esperando que o inesperado bata à porta.


Então estavam todos vivendo a expectativa. Do quê? De que as órbitas se encontrassem e um astro sombreasse o outro. Imagino que seja difícil cobrir todo o sol. Daqui vimos pouco, eu menos ainda porque estava no trabalho àquela altura. Queria a praia, a água, a areia, mas me contentei com o que me disseram. Houve choro e um abraço. Foi o bastante.


É da natureza dos fenômenos não se repetirem. Ocorrem e pronto, e dizer que ocorrem dá a exata medida da excepcionalidade. Estão lá a bem dizer para mostrar que algumas coisas passam e outras não, que demora até que haja um novo alinhamento no universo. E que, quando isso acontece, é preciso saber enxergar.


Daí que muita gente queira ver tudo a olho nu. Não é possível. Os cientistas recomendam lentes, a luz filtrada macula a vista. Os danos são irreparáveis aos aparelhos expostos ao fenômeno. É necessário paciência e um gesto de entrega que requer cuidado, zelo.


E, mesmo assim, estavam todos lá, na praia, que foi aonde os amigos correram para ver 40% do sol abocanhado pela lua em plena segunda-feira, esse dia banal por excelência. Noutros lugares, o eclipse deu-se por inteiro. Aqui, não. Mas foi o bastante. É como se, diante da lacuna, intuíssem a parte que falta, dispensando que dissessem o restante.


De tudo soube de ouvir dizer. E também porque, antes de chegar ao trabalho, eu mesmo tentei olhar pro fenômeno diretamente. Umas estrias vermelhas nasceram no céu dos olhos fechados, uns olhos agora de choro. Era forte a claridade, essa mesma que causou espanto a Orson Welles. A gente vive perto da linha imaginária. Na vizinhança desse meridiano, tudo é muito cristalino, tudo cega visto de perto.

 

Depois foi que me disseram que tinham visto algo mais na praia além do cientificamente esperado. Eram testemunhas não apenas de um eclipse solar. O que tinham visto? Eu perdi. Não sei dizer porque perdi, e ainda que me esforce para falar, será apenas o relato de uma perda. Perdi não apenas a parte do sol encoberto, mas também o jeito certo de falar sobre o que não se repete.


E, mesmo assim, só posso imaginar que tenha sido algo realmente incrível e que, no fim das contas, justifique todos esses clichês de palmas quando o sol se põe e desejos de sorte e amor pra vida inteira. Às vezes é só disso que a gente precisa: crer que saltando ondas nos livramos de um mal maior e que, mirando fixamente a órbita solar sendo vagarosamente engolida pela da lua, algo de mágico nos ocorra.


É como se, apenas de vez em quando, a gente precisasse deixar de lado esses rigores e carapaças e aceitar que talvez haja qualquer coisa de esotérica no fato de estarmos todos juntos e bem, alguns mais que outros, mas todos empenhados de alguma maneira nessa busca de que algo ou alguém nos aconteça em plena segunda.

Foto do Henrique Araújo

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