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No Ceará é assim
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

No Ceará é assim


Acho que as coisas começaram a sair dos trilhos quando o Fagner lançou No Ceará é assim. Era 1991, eu tinha 11 anos e aquele drible do Caniggia antes de bater pro gol e eliminar o Brasil da Copa de 90 ainda doía no peito feito um amor ginasiano não correspondido.


O prefeito da cidade era o Juraci, então não havia tantas razões pra comemorar. Eu morava num lugar chamado Veneza Tropical, na periferia de Fortaleza. Um bairro que não tinha nada da Veneza italiana. Era cercado por canais, é verdade, mas, em vez de gôndolas, havia sofás e portas de guarda-roupa abandonados nas águas barrentas onde, sempre que chovia, a gente entrava pra dar um mergulho. Não havia chicungunha nem facções, só uns gangueiros do bairro vizinho que nos punham pra correr sempre que tinha uma festa por lá.


Nesse lugar fui feliz pra caramba. Tinha cajueiro e umas poucas ruas calçamentadas onde perdíamos cabeças de dedo e partes do joelho correndo atrás da bola depois da aula. E tinha a Emanuelle, que era o que importava na época.


Foi nesse contexto que Fagner lançou No Ceará é assim. Aparentemente, é uma música que fala de saudade da terrinha, mas reparem numa coisa engraçada que só depois de adulto consegui entender. Está lá, no primeiro verso: "Eu só queria que você fosse um dia ver as praias bonitas do meu Ceará". Depois continua: "Tenho certeza que você gostaria dos mares bravios e das praias de lá".


Ou seja, o lugar é massa, mas ninguém quer ficar. O cara fala da perspectiva de quem foi embora e agora sente uma agulhada inevitável de saudade espetando sua alma semiárida, mas ele mesmo não se anima a voltar. Pelo contrário: tenta convencer outra pessoa de que as belezas naturais valem uma visita à capitania onde "a jangadinha vai no mar deslizando e o pescador o peixe vai pescando".


E arremata: No Ceará é assim, como a sugerir que esse mar infinito verde-esmeralda começa no Carlito Pamplona, passa pelo Joaquim Távora e chega ao outro lado da cidade, abafando o cheiro de esgoto de bairros como Curió e a minha Veneza Tropical.


Gosto de Fagner, mas sempre detestei essa música. Detesto ainda. Na verdade, eu odeio essa música. É melancólica, triste, ainda quando fala da virgem e das velas, duas imagens-síntese do Ceará que me fazem querer estar na Praia de Iracema no fim da tarde tomando uma cerveja e vendo o céu alaranjar-se enquanto me pergunto se Emanuelle já vai para o terceiro ou o quarto casamentos, se ainda escreve cartas, se ainda maltrata os meninos como gostava de fazer aos 12 anos.


Mas sobretudo o título da música me aborrece. No Ceará é assim? Assim como? Assim como no Conjunto Ceará ou no Alagadiço Novo? Assim como no Bom Jardim, onde agora querem regulamentar o rolezinho e os saraus, duas medidas que certamente contribuiriam para inserir definitivamente o Estado no mapa do Festival de Besteira que Assola o País? Assim como em Caucaia? Assim como em Pedra Branca?


Dizer que no Ceará é assim é quase um lamento. Tipo: vejam esses coqueiros, essas praias, essas dunas. Mas vejam também essa violência explosiva e essas obras paradas consumindo recursos enquanto todo mundo espera um metrô mais ou menos como os portugueses esperavam dom Sebastião.


Dizer que no Ceará é assim é amar e odiar o lugar onde se vive ao mesmo tempo. É falar de uma saudade, mas não mover um dedo pra transformar saudade em realidade. Ficar ali, ruminando o que poderia ter sido e não foi. E suspirar a cada Iracema que passa no calçadão no final do dia.


Foto do Henrique Araújo

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