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Alfonsina vestida de mar
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Alfonsina vestida de mar


Poucos discos escutei tantas vezes quanto o álbum duplo A Arte de Mercedes Sosa (Phonogram, 1988), que está completando 30 anos do seu lançamento. As músicas dessa obra antológica da grande intérprete latino-americana são cheias de significados profundos. Neste mês de maio, uma delas me lembra o aniversário de Alfonsina Storni (1892 – 1938), autora argentina, nascida ocasionalmente na Suíça, considerada a poetisa mais feminina da língua espanhola, além de pioneira do feminismo em seu país.


A força lírica, presente na vida dura e na produção sensível de Alfonsina, foi celebrada pelo canto de Mercedes Sosa (1935 – 2009) na canção Alfonsina y el Mar, parceria do pianista Ariel Ramirez (1921 – 2010) com o historiador Felix Luna (1925 – 2009), na qual, de forma apaixonada, a cantora e os compositores argentinos dramatizam a morte escolhida da poetisa, há oito décadas. Alfonsina tinha apenas 46 anos quando escreveu o poema Voy a Dormir, e se jogou nas águas de Mar del Plata.


“Sabe Deus que angústia te acompanhou/ Que antigas dores calaram tua voz/ Para deitar-se embalada ao canto das conchas marinhas”, diz a canção. Ainda em tradução livre, uma esmerada cena de encanto: “Cinco sereiazinhas te levarão/ Por caminhos de algas e de corais/ Fosforescentes cavalos marinhos/ Estarão em vigília/ E os habitantes da água/ brincarão a teu lado”.

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As imagens fantasiosas da letra e a comoção imponente da melodia, presentes na composição de Ramirez e Luna, somadas ao canto sentido e belo de Mercedes Sosa me levaram a querer saber mais de Alfonsina, ler os seus poemas e sentir a mensagem da sua existência. Atriz, professora, mãe solteira e colaboradora de revistas e páginas literárias de jornais, ela conquistou respeito e reconhecimento, contribuindo para a visibilidade do potencial da mulher na sociedade.


O trágico poema Voy a Domir, escrito em um momento de solidão amorosa e de agonia causada por um câncer de mama, é uma peça de extrema sublimação da dor. Nele, Alfonsina solicita a uma ama-de-leite imaginária que ilumine seu sono com as luzes de uma constelação. Pede para ficar em paz e deixa um recado: “Se ele telefonar novamente/ Diga que não insista/ Diga que saí”. A música Alfonsina y el Mar, inspirada nesses versos, pergunta com ternura que poemas novos ela terá ido buscar, “adormecida / vestida de mar”.


Alfonsina publicava notas introdutórias esclarecendo ao “dialogante amigo” leitor do seu estado de espírito ao escrever os poemas de cada obra: “Fiz este livro gemendo, chorando, sonhando, ai de mim” (El Duce Daño); “poemas tirados do fundo da vida, de momentos fortes como a violência do fogo e os levianos como os flocos de espuma” (Irremediavelmente); “Se a vida e as coisas me permitirem, outra há de ser a minha poesia amanhã” (Languidez)... Assim apresentava os versos famintos de infinito do seu inquieto jeito de florescer.


A força poética do mar revolto interior de Alfonsina e sua determinação para questionar a realidade asseguraram um espaço de destaque para ela na poesia hispano-americana no começo do século passado, um tempo em que era muito difícil a ascensão feminina por méritos próprios, sobretudo, no caso dela, que tinha alma nua, que falava de frustrações pessoais e de desilusões com injustiças e desigualdades.

 

Foto do Flávio Paiva

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