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Ter posse e o sentido de desfrutar
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Ter posse e o sentido de desfrutar


A noção de que o verdadeiro sentido de possuir algo está associado ao usufruto que esse algo pode oferecer, altera-se com as novas configurações de negócios e comportamentos sociais. Empresas de transporte não necessitam mais possuir veículos para serem líderes de mercado, e pessoas que escutam música não precisam mais ter estantes para guardar álbuns de suas preferências.


Na perspectiva plena do desfrutar, o caráter tradicional de propriedade perde força. Em muitas circunstâncias, ficou mais cômodo possuir sem ter a posse. Com a ampliação da expectativa do tempo de vida da população mundial, a ascensão ao lazer e a busca pelo tempo de convívio perdido são traços mestres no desenho de sociedade que vem se esboçando.


Não arriscaria dizer que se trata de um modelo social nascente, mas torna-se cada vez mais comum a disposição de muita gente de não mais abrir mão do usufruto do acesso em troca da ânsia de possuir coisas, muitas delas dispensáveis. A ambição flui e reflui em vendavais contraditórios. Até as padronizações definidas secularmente para os dias considerados úteis estão sendo questionadas para a saúde social.

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Por outro lado, o tempo livre, aprisionado em apelos por descanso e recuperação semanal, já não parece mais tão inútil. As tradicionais horas vagas passam a ter substância social e cultural na compreensão de muita gente. A escala do olhar não é mais a mesma nesse tipo de realidade expandida. Os antes dias inúteis passam a ser um importante ativo com as possibilidades criadas pelo senso de possuir sem ter.


A alteração nos sinais de diferenciação social tem também o seu lado caricatural. Outro dia, em um shopping de Fortaleza, testemunhei cena curiosa que exemplifica um dos aspectos dilemáticos entre o acessar e ter. Um cantor de uma certa banda estava em uma loja provando diferentes roupas, o que seria normal, não fosse o fato de ele postar nas redes sociais as fotos de cada roupa provada, como material de divulgação de show.


O embaraço da decisão entre possuir e acessar vai além do faz-de-conta dos selfies. Ele se dá nesse dilema, mais profundamente na opção entre o egoísmo e o holismo. A presunção do exclusivismo patrimonial perde, neste raciocínio, espaço para visões da complementaridade feita de diferenças, ainda que não altere necessariamente as relações de poder.


No artigo “Acessar é melhor do que ter”, que escrevi sobre esse tema no Vida&Arte (23/6/2002), quando a minha coluna era publicada aos domingos, expus a minha convicção de que na nossa navegação errática em busca da felicidade levam-se muitos sustos na tentativa de passar no teste da realidade. Enxergar longe é um exercício trabalhoso para quem vive o comodismo de pupila dilatada da sociedade do efêmero.


Flexibilizar a ambição da posse é um exercício interessante para os tempos atuais. Em De uns tempos para cá, Chico César sentencia que “coisas são só coisas / servem só pra tropeçar / têm seu brilho no começo / mas se viro pelo avesso / são fardos pra carregar”. Acumular perde aqui a razão do sacrifício dos momentos de carinho e afeto feito em nome das coisas para ter. Para ser proprietário do que se mais gosta de fazer e admirar no mundo atual a opção mais tentadora é entender que possuir é mais do que ter.

 

Foto do Flávio Paiva

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