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O manifesto político-dionisíaco de Daniel Medina
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

O manifesto político-dionisíaco de Daniel Medina


Em tempos difíceis, como os vividos na atualidade, a dureza do presente pode até chegar a desautorizar sonhos e utopias, mas não tem como evitar que o sentimento de insatisfação, o espírito crítico e o desejo de liberdade se manifestem. Por sua natureza sensível e transformadora, a arte ocupa um dos lugares de destaque no enfrentamento dessa avassaladora falta de sentido que ora é causa, ora é consequência de uma cidadania sitiada em sua própria falta de horizontes.


É a partir desse cenário de falsas impossibilidades que o compositor e cantor Daniel Medina endereça a trama e o drama musical do seu disco Evoé (YB Music, 2017), tirando da boca dos mitos para a boca das pessoas a explicação do que está acontecendo. Esse álbum revela bem os movimentos de um artista que sabe extrair ideias estéticas das vicissitudes para transformar em música de força cênica.

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Na expressiva faixa Boi-Cidade, que conta com a participação de Juruviara, é impressionante os detalhes de um enredo que vai revelando a negação da cultura popular interiorana por parte de comportamentos urbanos, mesmo quando, para isso, estes falseiam a si mesmos. “A cidade é um boi em pessoa” (...) “A cidade se espelha nos mortos”. E o boi não ressuscita como no auto de reisado.


Daniel Medina transita pela cidade e não encontra elementos da cultura nativa original, só algumas placas com nomes de tribos indicando ruas. Canta Lágrima de Índio como quem semeia micro-lendas. Cultiva a necessidade da descoberta em Icarus, canção na qual prega que “Estão vivos / nossos mortos”. Exalta as manifestações de cidadania orgânica em Nós ao Vivo, mas faz uma irônica autocrítica: ‘apesar de nós mesmos’. Nada, porém, que iniba o convite à aventura das odisseias, como no pop-agalopado Anti-herói, no qual o cantautor puxa o encorajamento participativo em cadência marcial de caráter épico.


A riqueza simbólica de Evoé está impregnada de referências bíblicas, a começar pelo mito de Adão e Eva, ressignificado por Daniel Medina na faixa Santa Ceia, em um ato de ‘cocriação com o Criador’ para atualizar a função das relações amorosas, saindo do pecado para o deleite: “Cama e mesa sem receita”. O tema segue em Cobra do Contrário, anti-música do caso da maçã, que conta com a participação de Gero Camilo.


O amor está presente na bela Cancioneta, que tem a participação de Marcelo Jeneci: “Ah, meu amor / meu amor (...) Me aceite do jeito que sou”; em Outros Sóis, um devaneio minimalista de solidão: “Noutro lugar distante / Dos desastres / Das civilizações / Uma cidade nasce”; e em forma de desamor, na faixa Cantar Vitória: “Você fala que vai embora / Mas agora eu não tenho medo”.


Evoé possibilita luz de fruição estética e propicia contato com o indefinido das sombras. Isso porque em Daniel Medina a música é performance, exercício de presença, meio de chegar ao imago mundi de quem ouve. Em função das circunstâncias de dissolução das subjetividades e de desmoronamento histórico das conquistas sociais, o cantor não cede o seu lugar a qualquer tipo. Centrado no seu propósito de intérprete poético, confessional e propenso à alegria e à felicidade diante de conflitos humanos, vale-se de personas para percorrer cantos e recantos da tragédia política brasileira. Evoé!!!

 

Foto do Flávio Paiva

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