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O som nos laços afetivos
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

O som nos laços afetivos


Na gestação e na primeira infância o ser humano passa por um tempo de preciosa experiência acústica. O comportamento emocional de cada indivíduo está associado aos sons a que é exposto principalmente nos primeiros mil dias, incluindo aí o tempo da gravidez. A presença do som com suas ondas invisíveis, sobretudo aquelas entoadas em carícias maternais, é fundamental para o desenvolvimento de laços afetivos.


Ainda na vida intrauterina, a primeira referência que temos do mundo externo é o som. A região do ventre é tocada por tudo que é audível, sejam sons harmônicos ou ruidosos, e a disposição auditiva do ouvido é capaz de registrar impulsos minúsculos da realidade sem se prender aos limites das superfícies que barram os demais sentidos.


O som permite a nossa aproximação com o que está por trás das coisas, e é assim que o ritmo respiratório e as batidas do coração da mãe somam-se às vozes e aos sons externos. Nossa consciência do mundo começa a ser formada com a audição no estado pré-natal.


Ao nascer é importante que o bebê reconheça alguns dos sons externos que escutou dentro da barriga da mãe, inclusive a voz dela. Isso inspira segurança, proteção e carinho. O recém-nascido precisa de conforto na psicodinâmica de controle da ansiedade causada pela separação da mãe, pelo medo do abandono e pelo choque com a luz no processo de abertura dos olhos.

 

A criança tem normalmente no pai o elemento provocador da sua percepção de que não faz parte da mãe. Nesse momento, ter sons já soados e vinculados à voz paterna leva a uma situação de bem-estar. O colo de som torna ainda figuras parentais, cuidadores e educadores mensageiros de valores culturais.


Nos primeiros momentos de vida do bebê, recursos como o da música e da poesia podem servir de elementos transicionais, como acontece com os paninhos e os bichinhos de pelúcia. O som de dentro dos poemas, presente no sentimento que a fala carrega durante a leitura, nas palavras, no tom, no timbre e na modulação da voz, toca o código de significados, enquanto a música cita o código de significantes.


Por acreditar nisso, os poemas e as canções do meu livro-cd Afeto (Cortez Editora) remetem a lugares e situações do cotidiano infantil em que a presença de elementos a serem capturados pela criança se dá em um crescente perceptivo. Procuro não entregar totalmente o que com eles desejo exprimir. Esse cuidado está patente também nos sons imagéticos e suaves do piano de Eugênio Matos e nos traços sonoros de Janaina Tokitaka sobre o vazio da página em branco.


A audição continuada de poemas, lidos com delicada música de fundo, contribui para a criação de campos de força da relação harmoniosa. A música e a poesia têm duração próprias porque se projetam em cada instante do presente. Lembranças sonoras não se limitam a recordações, pois movem-se em cadências subjetivas, fluindo pelos fenômenos físico, emocional, sentimental e estético rumo à construção de vínculos.


O cuidado com a sonoridade poética e musical durante a gestação e a primeira infância põe simultaneamente a criança em contato com a sua natureza interior e exterior, produzindo o sentimento de ser parte do todo. E o ponto de encontro dos mundos placentário e planetário é o som e seu poder de alcançar vibrações íntimas profundas.


Foto do Flávio Paiva

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