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100 anos de Saciologia
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

100 anos de Saciologia


O Saci já assobiava no imaginário do Brasil tupi-guarani quando os colonizadores chegaram ao País há mais de cinco séculos. Çaa Cy significa “olho que assusta” e Pérérég quer dizer “saltitante”. Era assim que o povo indígena fazia referência ao canto agourento das aves noturnas. Muitos dos seres fantásticos da natureza nascem assim. Monteiro Lobato (1882 – 1948) dizia que o medo é o pai da bicharada. E foi ele quem há cem anos inventou a SACIologia.


Lobato vivia incomodado com o deslumbre das elites brasileiras diante de tudo que chegava de fora. Via a industrialização da São Paulo dos barões do café atraindo mão de obra da zona rural, mas, ao mesmo tempo, desprezando a cultura do interior. Havia uma contradição entre essa negação e o desejo de valorização do produto nacional.


Já percebendo que a sustentabilidade do crescimento econômico passa pelo fortalecimento da cultura, Monteiro Lobato decidiu fazer uma pesquisa sobre o Saci, até então apenas um ente folclórico, cuja figura variava de região para região conforme o grau de medo inspirado pela natureza noturna de cada lugar e a intensidade dos conceitos ideológicos dominantes. Fez isso em 1917, com apoio do Estadinho, como era chamada a edição vespertina do jornal O Estado de São Paulo.


A iniciativa de Lobato visava, inclusive, criar as condições para que o Saci pudesse circular pelos cursos do Liceu de Artes e Ofícios, onde só era permitido entrar os faunos, gnomos e sátiros das culturas europeias. Para ele, o saci no liceu seria como introduzir maxixe em coreografia e moqueca em culinária. Chamou essa sondagem de “inquérito”, no sentido de apuração dos fatos.


O motivo para a tomada do caminho da auscultação pública era evitar que apenas os eruditos, os folcloristas e os profissionais das letras tomassem conta do assunto. Com o “inquérito”, muitos se manifestariam, os estilos variariam e se ampliaria o inusitado da “Mitologia Brasílica”. A obtenção das respostas foi provocada por um questionário acessível, no qual o jornal solicitava “depoimento honesto” a respeito dos seguintes pontos:


1º) Como você recebeu essa crendice na sua infância, de quem a recebeu e que papel ela representou na sua vida?


2º) Qual a forma atual dessa crendice na zona em que você mora?


3º) Que histórias e casos interessantes você vivenciou ou escutou a respeito do Saci?


Choveram relatos espontâneos e diversificados, saídos de dentro do imaginário de cada participante. Tem até um cearense contando que no Nordeste o Saci é conhecido como Caipora e que ouviu de antigos escravos a história de que essa criatura “tem uma banda só”. Desde que li esse depoimento passei a pensar na perna invisível do Saci como uma influência do Ossain, orixá que em rituais afro cuida das plantas sagradas e medicinais, tem filhos travessos e é representado como um ser das metades.


A inquietação de Monteiro Lobato não o deixou parar no apanhado das visões colhidas na pesquisa sobre o Saci Pererê. Ele fez também um concurso de ilustrações inspirado no conteúdo mítico revelado. Juntou tudo, editou e fez uma publicação com o título O Sacy-Pererê – Resultado de um Inquérito (1918). Com base nesse material, escreveu o livro O Saci (1921), obra que delineou os traços essenciais do mais importante personagem da cultura popular brasileira.


Foto do Flávio Paiva

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