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Outubro despedaçado
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Outubro despedaçado

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Em Abril Despedaçado, Tonho se nega a emprestar seu corpo para dar continuidade a uma herança violenta que dilacera duas famílias que se vingam e se matam durante uma sina inteira.

O cenário da película é redesenhado para o sertão brasileiro, mas a obra de Ismail Kadaré (Prilli i Thyer) é vestígio de suas memórias numa Albânia devastada pela barbárie da 2ª Guerra.

Tonho é o próximo na sucessão de neomatadores, e futuramente mais um defunto, a ter de vingar o assassinato de outro parente morto que se foi numa tocaia. No caso, o irmão mais velho.

O pai o impele, a tradição o implica. O leitor, espectador, se mexe num incomodo particular. Chafurda-se no que é. Entre o querer sem fim da vingança (haverá sempre uma desculpa para uma forra) ou pela decisão de bastar com a roda da morte.

O rapaz, numa coragem, se recusa e destrói ali, pelo menos no corpo dele, a escrita do bárbaro.

Dali em diante, do momento em que sua palavra se contrapõe ao corpo-vingança do pai e da família inteira, Tonho se torna livre. 

Desprega-se da estupidez de perder a condição natural de ser humano e ainda reforça a criatura política que é pelo argumento honesto da prosa.

Seu corpo não está para eliminar ninguém nem para fazê-lo de refém.

Mesmo que o outro insista, armado, para devastá-lo. Arma de fogo ou palavra propagada para justificar o destroço de uma Albânia ou o desconsolo de uma Hiroshima.

Penso neste outubro despedaçado. Nos corpos que não podem ser o que querem ser porque a arrogância é excludente. E aí, vinganças à direita ou à esquerda. Sem diversidade e ferir de morte o divergente.

É que o nazismo... o coronelismo, o machismo, o imperativo, o desmatamento, a tortura, o homicídio, a guerra, o estupro da menina, o direitismo, o murro na cara do outro, o esquerdismo, a pobreza, a vingança, o linchamento, o centrismo, o tiro na testa... É estúpido.

Tenho medo do autoritarismo, talvez, porque também seja violento.

Mas prefiro ser Tonho, me livrar do corpo criado para odiar porque foi talhado.

Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; isso é falta de soberania... Aqui é Guimarães Rosa.

(Abril Despedaçado é um filme de Walter Sales (2001) e roteiro de Karim Aïnouz, baseado no livro Prilli i Thyer, do albanês Ismail Kadaré.)

Foto do Demitri Túlio

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