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As memórias de Maria Amélia
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

As memórias de Maria Amélia

 

Talvez memória seja alguém transbordando dela mesmo. Tão cheio. E a palavra velhice caiba também nesse derramamento. Comparável à síntese Castanhão. Um desmundo de Sertão, a necessidade, os homens a cavar, as máquinas vorazes, o buraco fundo e o mar numa chuva só em 2004.

Mas ali tão sangrado de memórias! Tanto que Jaguaribara projetada, anos depois, ainda é um oco. Mesmo que alguns poucos velhos ainda estejam por lá. Todo mundo deu notícia quando os seis anos de seca voltaram com a igreja velha, com o traçado do arruamento e umas casas desafogadas.

Encontrei um pote por lá. E como sou besta pra imaginar besteira, fiquei fiando. Quem terá metido um caneco ali, no pé de uma cozinha de quem? Quem serviu alguém mais pobre ou parente que veio ter? Era água de tomar, coada do Jaguaribe? Fervia café? Dava de beber aos pintos?

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E como o pote teria resistido à violência de tanta água nova? Bolando no fundo, arrastado na correnteza da Jaguaribara inundada? Umas profundezas mais medonhas de que a da Femme Bateau. Muito mais, mas sem baleias. Verdade, tucunarés e pirarucus inimagináveis no Semiárido. Gigantescos.

Mas esta conversa era para dizer de Maria Amélia. Da memória que nela insiste aos quase 90 anos porque resolveu ter a existência voltada para os índios que resistiram à colonização portuguesa. Primeiro os Xocós, no São Francisco sergipano, nos anos 70.

Criptoindígenas por causa da ordem pombalina para não existir mais "selvagens" nas terras secas e nas ricas. Quem não se batizou João, Miguel, Manoel foi sumido ou se escondeu. Um tempo longo de um estigma que se amaldiçoou até hoje.

Maria Amélia não é do tempo da colônia, mas tem a alma antiga. E quando se juntou a dom Aloísio Lorscheider e outros contrários à história dos vencedores, no século XX, retomou na Missão Tremembé, no Ceará, a luta pelo direito dos índios de Itarema e outras nações.

Para reaver a terra tomada, a dignidade e serem reconhecidos descendentes do povo exterminado. É estranho quem decide lutar a luta dos outros e, certo modo, se esquece da própria.

Não é se deixar do próprio corpo, não se enfeitar, não achar bonita a boca no vermelho, não ter vontade de respirar ofegante. Há gozo nisso e, também, se derramar em prazer com um canto ancestral, um ritual do torém e os pelos eriçados com a liderança do feminino.

Há algum tempo o corpo de Maria Amélia se alastra em memórias. Pode ter se tornado frágil, lógico. Vamos esfarelando os ossos, derretendo a pele, "desunerando" os intestinos, choramingando a libido...

Maria Amélia é mestra. Não de nenhuma aldeia onde conviveu, mas do ofício voluntário da peleja pela história Tremembé. Foi ela quem precisou dos índios pra ir dando sentido ao existir e ao fim.

Tanto tempo depois das invasões bárbaras europeias por aqui, rodam no corpo da Maria antiga (e sua juventude) as narrativas para quem quiser ouvir. Ela transborda.

 

Foto do Demitri Túlio

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