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Tributo ao Peres

2019-01-24 01:30:00
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Asucessão de diretores incompetentes à frente do Denatran teve pelo menos uma exceção: Alfredo Peres da Silva, que dirigiu a entidade máxima do trânsito brasileiro de 2005 a 2010 e que faleceu no dia 13 de janeiro. Nasceu em Corumbá (MS), formou-se em direito e foi um dos maiores especialistas em trânsito no Brasil. Participou ativamente da elaboração do Código de Trânsito Brasileiro, publicado em 1997 e vigente desde janeiro de 1998. 

 

Defendia com unhas e dentes a segurança veicular e a educação de trânsito nas escolas. Foi também diretor de inúmeras entidades de transporte de cargas e recebeu várias condecorações em reconhecimento ao seu trabalho no setor.

 

Como jornalista, eu sempre critiquei a postura do governo federal em relação ao trânsito, à segurança veicular e à legislação. O Peres foi, até hoje, o único a me ligar e retrucar. Trocávamos ideias. E farpas, algumas vezes. Defendia com elegância certas decisões que eu criticava com certa dureza. "No governo - ele dizia - não se faz exatamente o que se quer, mas o que é possível".

 

Um belo dia, recebo uma ligação de sua secretária pedindo uma reserva de data. Dias depois era o Peres na linha, oficializando um convite para uma palestra em Brasília, durante a posse dos novos membros das seis Câmaras Temáticas do Conselho Nacional de Trânsito. Especialistas que discutiam e analisavam todas as resoluções técnicas do Contran, que, no frigir dos ovos, determinavam as diretrizes básicas do trânsito a serem executadas pelo Denatran e Detran´s de cada estado.

 

"Você enlouqueceu Peres? Você me conhece e sabe das minhas críticas a estas câmaras temáticas. Que parte dos nossos problemas de trânsito resultam exatamente de suas decisões atabalhoadas!"

 

"É por isso mesmo que estou te convidando - retrucou o Peres - Venha e fale o que você quiser". Fui. Auditório lotado com centenas de empresários, representantes de entidades de classe, de fábricas de automóveis e equipamentos, lobistas, técnicos de ministérios e funcionários de órgãos de trânsito de todo o País.

 

Já comecei a palestra afirmando que a responsabilidade de grande parte de feridos e dos 40 mil mortos nos acidentes de trânsito era a incompetência das câmaras temáticas. Fez-se um silêncio ensurdecedor na plateia. Engrenei uma segunda e disse que as câmaras não suportavam as pressões políticas e econômicas do governo, de parlamentares e de empresas do setor. Que muitas de suas decisões significavam faturamento de bilhões de reais ao tornar obrigatório o uso de equipamentos ou a prestação de serviços para dezenas de milhões de veículos e motoristas.

 

Dei exemplos: a Philips, gigante multinacional, queria ver aprovada a utilização das lâmpadas de xenônio em qualquer veículo. Pressionou as câmaras temáticas com argumentos técnicos distorcidos e interpretando a lei de acordo com sua conveniência. Apesar dos pareceres de que, tecnicamente, se instaladas em automóveis não projetados para seu uso iriam ofuscar outros motoristas e provocar acidentes.

 

Citei outros absurdos decididos pelas câmaras como a exceção à obrigatoriedade de se carregar crianças no banco traseiro em picapes ou esportivos que só contavam com o dianteiro. As fábricas de automóveis pressionaram também durante muito anos para que o Contran não exigisse o apoio de cabeça e cinto retrátil no centro do banco traseiro. Um custo adicional para a fábrica, apesar de ser óbvio que o quinto passageiro tivesse direito à mesma proteção que os outros quatro. Critiquei a permissão do transporte - assassino - de boias-frias nas carrocerias de caminhões. E que a posse de novos membros poderia significar um divisor de águas no nosso triste recorde mundial de mortos no trânsito.

 

Ao final, os aplausos foram muito pouco entusiásticos. Em compensação, recebi um forte abraço do Alfredo Peres e nossa amizade foi fortalecida desde então. O Contran nunca mais foi o mesmo depois dele.

O Brasil precisa de mais gente como o Peres?

Boris Feldman

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