Logo O POVO+
Cicatrizes na memória
Ciência e Saúde

Cicatrizes na memória

| prevenção | A violência obstétrica se manifesta em cada medo ou procedimento que poderia ser evitado
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
 (Foto: itsskin / gettyimages)
Foto: itsskin / gettyimages

Nos quatro primeiros meses deste ano, o número de denúncias de violência obstétrica, no Brasil, recebidas pelo número 180 (Central de Atendimento à Mulher), foi dez vezes maior do que no mesmo período de 2018. Entre janeiro e abril de 2019, foram 260 denúncias contra 26 no primeiro quadrimestre do ano passado. A informação é da rádio CBN. Cada número significa uma história que poderia ter sido diferente. Nestes três depoimentos, mulheres relatam ao O POVO experiências de dor além do parto e demonstram como é possível combater e prevenir a violência obstétrica.

Olhar respeitoso

No primeiro parto, há nove anos, houve uma enfermeira que se aproximou, "olhou no meu olho, chamou o meu nome", guarda a doula Morgana Xavier, 30 anos. Ela conta que foi "bem tratada" pelos profissionais que lhe ajudaram nas oito horas de trabalho de parto, mas aquela enfermeira fez a diferença: "Recebeu a minha filha muito bem e me deu, imediatamente, para segurar. E eu me senti muito bem".

Um sentimento que, aliado ao conhecimento do próprio corpo, lhe deu confiança no segundo parto, quase dois anos depois. Morgana já sabia lidar com as dores e relata que tinha encontrado a melhor posição para parir quando o médico determinou que ela fosse para a mesa cirúrgica. "Naquele momento, parece que toda minha engrenagem do trabalho de parto parou", restaura, lembrando-se ainda de que as pernas foram amarradas na posição ginecológica.

"Passei 20 minutos nessa posição, e ele me cutucando. E a enfermeira fazendo cócegas na minha barriga pra eu ter contração. E eu chorando, pedindo pra me tirar dali", ressente. Depois desse tempo de "terrorismo", continua, ela voltou ao quarto, e a equipe foi atender outras demandas. A criança nasceu quando Morgana, sozinha, já esgotava as forças. "Peguei ela só depois."

Então, veio o tempo de amamentar dois bebês e cuidar da vida. Ela desabafou, com amigas, o que sofreu, mas não denunciou. "Meu companheiro, na época, achava que era frescura", subtrai. "Eu venho contando essa história há seis anos e parece que, cada vez que conto, vou curando esse parto", transforma.

Morgana também integra o Coletivo Gaya - que atua, desde 2016, como rede de apoio a gestantes e mães. Ter se tornado doula, espelha, é ainda oferecer o olhar respeitoso que recebeu daquela enfermeira em seu primeiro parto.

Alguém do mesmo lado

Eloíza do Nascimento de Oliveira, 37 anos, tem quatro filhos. Entre o primeiro, que tem 20, e o mais novo, de um ano, deu-se um aprendizado sobre si mesma. Eloíza começou a ser mãe aos 16. "Eu não esperava, a gente passa por muitas dificuldades: a barriga cresce, o seio cresce... A gente não sabe o que está acontecendo", relata. Eram mais julgamentos do que informações. "Me diziam: engravidar bem novinha, vai acabar com os estudos, com a tua vida. Julgamento, sempre tem. Até hoje", expõe.

Ela lembra bem o parto inaugural: "Como era a primeira vez, eu não sabia como se comportar. Fui pra maternidade domingo à noite e passei a noite gritando. E ninguém pra me ajudar. Só tinha três pessoas no quarto que eu estava, e uma dizia: não grita muito porque, se gritar, é pior". Com medo do pior, Eloíza diz que se calou na hora do parto normal.

O segundo trauma veio quatro anos depois. A filha, reconstitui Eloíza, "estava dormindo e não ajudou muito... A enfermeira montou na minha barriga pra menina nascer".

Após um ano, a terceira gestação já não lhe assustava: "Já sabia como era. Não fiz aquele escândalo, fiquei calma". Mas apenas no quarto parto, mesmo com uma cesariana de última hora, ela se sentiu segura. O médico lhe tirou as dúvidas, ressalta Eloíza, "perguntou se podia fazer o exame de toque", e uma enfermeira "passou o tempo conversando comigo, explicando".

Por saber a importância de "estar com alguém que nos entende", a mãe do Érick, da Érica, do Elias e do Emanuel continua nas rodas de conversas com gestantes no bairro Passaré. Foi conversando que ela aprendeu, aos sete meses da última gestação, que poderia fazer escolhas. "Eu pensei que era só do jeito deles (médicos). Mas também a gente pode dar nossa opinião", soma.

Sem pressa ou medo

Lucas quis nascer aos sete meses. Raquel Albuquerque, 37 anos, teve que se apressar também mãe. "Trabalhei até o dia de ir pro hospital. Comecei a sentir dor meia-noite e fui aguentando até onde podia", refaz, inclusive, o percurso por três hospitais públicos até ser recebida por um que tivesse condições de realizar o parto prematuro.

Raquel diz ter ficado sozinha em uma sala, sem direito a acompanhante. "Aí, botaram uma injeção em mim. O médico vinha fazer o (exame de) toque, mas não dizia nada", conta. "Eu sentia medo porque eu nem sabia como era. Medo, pânico, porque eu estava lá sozinha. E também porque era de sete meses", resume como foi atravessar aquele parto, há sete anos.

"A Sara já foi, totalmente, diferente", ela emenda. "Eu já estava frequentando as rodas (de conversas com gestantes, no Passaré) e sabia que não tinha que ir na primeira dor e ficar esperando", repassa. O médico também foi mais atencioso, "tudo o que ele ia fazer, ele dizia", e Raquel contou com o apoio de uma cunhada, que lhe acompanhou durante todo o trabalho de parto.

O conhecimento sobre o corpo e os direitos foi fundamental para mãe e filha nascerem ao mesmo tempo, sem pressa ou medo. "Quando eu tive o Lucas, eu não sabia de nada. Se soubesse, não tinha passado por essa gravidez de risco. Não sabia que era lei ter um acompanhante, não sabia que podia me levantar", compara. "Não sabia que aquele cortezinho (episiotomia) era uma violência, deixar a gente sozinha... Depois, eu contando (a própria história) é que fui saber", reflete.

Rodas de conversa

Projeto Cucuí - os encontros são no Projeto Sementes da ICA (Prossica - avenida Pompílio Gomes, 7, Passaré), no primeiro sábado de cada mês, a partir das 8h30. Aberto ao público em geral e com entrada franca.

Coletivo Gaya - as rodas de conversa são a cada dois meses, às 16 horas, na praça do Santuário de Nossa Senhora de Fátima (avenida 13 de Maio). O próximo encontro é no dia 27 de julho, com o tema "Parto normal ou cesariana?" e uma programação de aniversário do coletivo. Aberto ao púbico em geral e com entrada franca.

 

O que você achou desse conteúdo?