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Malformações uterinas
Ciência e Saúde

Malformações uterinas

|Mulheres| Apesar de atingirem até 5% da população feminina brasileira, as malformações uterinas são tema desconhecido para mulheres e profissionais de saúde
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Já era a segunda tentativa de engravidar de Kelly Rodrigues Gomes, 32, que resultava em um aborto espontâneo. Na primeira gestação teve sangramentos vaginais leves, porém constantes, que os médicos da cidade garantiam ser "normais". Entretanto, aproximadamente, no quinto mês de gravidez, a bolsa estourou. Kelly perdeu o primeiro filho no hospital. O mesmo ocorreu na segunda tentativa.

Moradora de Alcântaras, interior do Ceará, ela veio a Fortaleza para entender a causa das perdas gestacionais. Na Capital, descobriu que tinha útero bicorno, uma malformação uterina. De volta à casa, Kelly teve de enfrentar não apenas a tristeza de perder mais um filho, mas também a desinformação dos médicos locais sobre a deformidade. Por medo de vivenciar mais um aborto, a dona de casa passou 12 anos sem tentar uma nova gravidez.

Assim como Kelly, pelo menos 1% a 5% das mulheres brasileiras convivem com as mais diversas deformidades uterinas, de acordo com a ginecologista creditada pela Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Manuela Porto. Ela explica que as anomalias surgem de falhas no desenvolvimento do útero ainda na fase embrionária. Nesse estágio, existem duas estruturas que formam os órgãos humanos, cuja fusão origina o organismo. Às vezes, acontecem falhas de origens desconhecidas que ocasionam em malformações.

Geralmente, as anomalias müllerianas, nome técnico das deformidades, são descobertas após gestações interrompidas como as vividas por Kelly. Manuela afirma que elas só passam a ser percebidas pelas mulheres quando têm a vida reprodutiva e sexual afetadas. Contudo, é possível identificá-las ainda na adolescência, já que o sistema genital feminino está completamente funcional assim que começa a menstruar, em torno dos 12 a 16 anos.

Identificada uma malformação uterina, o protocolo sugere que o médico investigue outras deformidades no organismo da mulher. Segundo a ginecologista, há probabilidade de existirem malformações renais, pois o sistema urinário deriva da mesma estrutura que o sistema reprodutor. Em casos mais raros, podem existir anomalias gastrointestinais ou musculoesqueléticas, que apresentam sinais no nascimento ou primeira infância.

A profissional diz que as principais manifestações das anomalias de Müller, além da dificuldade de engravidar, são fortes sintomas menstruais como dores pélvicas após a primeira menstruação, cólicas intensas e sangramento excessivo. Como os úteros mal formados normalmente possuem uma área maior, o endométrio (a camada de sangue menstrual) acumula mais nas paredes uterinas, ao qual o órgão tem dificuldade de remover. Para que o endométrio se solte, as contrações musculares ficam mais fortes que o normal.

Médicos desconhecem deformidades

Cindy Damasceno, 23, descobriu o também útero bicorno quanto tinha 13 anos, após os exames de rotina da menarca, a primeira menstruação. Após fazer todos os testes, foi informada pela ginecologista da malformação e orientada a se preocupar apenas quando planejasse engravidar. Desde então, ela tem ciclos menstruais doloridos que ocasionam em desmaios.

Ao procurar respostas para as dores, três ginecologistas disseram a ela que eram sintomas comuns. Depois, uma profissional recomendou o uso de anticoncepcionais e outra cogitou a endometriose como causa. De acordo com a universitária, nenhum deles investigou uma relação entre as dores e a deformidade uterina. “Sempre aparece no ultrassom (o útero bicorno), mas até agora sempre foi ignorado. Para os ginecologistas nunca é um fator muito relevante para nada”, conta.

O mesmo ocorreu com Kelly. As cólicas da dona de casa eram intensas “a ponto de ir para o hospital”. Ainda assim, nenhum médico associou a algum problema uterino, um dos motivos para chegar aos 20 anos de idade desconhecendo sua condição. Segundo ela, alguns dos ginecologistas de Alcântaras sequer sabem da existência das anomalias.

“A grande massa dos ginecologistas está despreparada para lidar com essa situação”, analisa Manuela. A ginecologista explicita que muitas vezes os médicos desconhecem as deformidades e como elas afetam o cotidiano da mulher. Consequentemente, nenhuma informação é repassada para as pacientes, que seguem a vida sem entender o próprio corpo e as possibilidades de correções cirúrgicas e de gestação. “Quando o assunto é sistema reprodutor, você entra na autoestima da mulher. Deveria ser parte da abordagem do ginecologista explicar tudo para que ela não se sinta inferior”, afirma.

Pele de tilápia é usada na reconstrução do útero e vagina

De acordo com a ginecologista Manuela Porto, as pesquisas na área têm focado no desenvolvimento de técnicas cirúrgicas para correção uterina. Enquanto alguns procedimentos são inviáveis, existem opções para a gravidez como a barriga de aluguel ou o transplante de útero. No Brasil, o transplante só é efetuado em São Paulo, onde o primeiro nascimento oriundo de um útero transplantado de uma doadora morta foi registrado, no dia cinco de dezembro de 2018.

Já em Fortaleza, a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC), da Universidade Federal do Ceará (UFC), estuda o uso da pele de tilápia como matéria alternativa para a construção vaginal em mulheres que nasceram com agenesia uterina, a ausência do útero e vagina. Há 10 anos, o procedimento era realizado com pedaços da pele da paciente. Ao utilizar a epiderme do peixe, a ginecologista Zenilda Bruno indica que a cirurgia será mais confortável para a mulher. Oito pacientes já foram operadas com a nova matéria prima e têm respondido bem, mas a profissional destaca que o estudo ainda está em fase de testes.

A saúde do ventre é a saúde da mulher

Para que uma mulher esteja saudável, o sistema genital deve funcionar bem. A ginecologista Aline Lucena considera que entender o funcionamento do sistema genital colabora para uma vida saudável. "A saúde dele (o sistema) é a saúde do corpo da mulher por inteiro", diz.

Devido a interdependência entre os sistemas do corpo humano, é possível notar vários alertas do estado de saúde da mulher por meio do sistema genital. Isso porque os dois hormônios liberados pelos ovários, a progesterona e o estrogênio, afetam tanto funções reprodutivas, quanto fisiológicas. O estrogênio atua na regulação de gordura e água, e na proteção dos vasos sanguíneos, enquanto a progesterona é responsável pela preparação do útero para a gravidez, além de influenciar no humor.

O impacto da menopausa nas mulheres é um exemplo. Ela pode ocorrer a partir dos 50 anos de idade, quando as mulheres param de menstruar por não produzirem mais estrogênio. A partir daí, a tendência é que as mulheres fiquem mais irritadas, acumulem mais gordura, retenham líquidos e sintam mais calor, além de estarem mais propensas a doenças cardiovasculares.

A ginecologista recomenda atenção aos corrimentos vaginais, por exemplo. Corrimentos transparentes ou brancos, sem odor e que não coçam são normais e saudáveis. Entretanto, qualquer alternância na cor, consistência e textura pode revelar uma doença ou desequilíbrio hormonal.

Aline explica que o ciclo menstrual pode ser afetado por má alimentação, atividade física em excesso ou obesidade, assim como por transtornos ansiosos e/ou depressivos. Além disso, doenças na tireoide, diabetes, estresse, insônia e exaustão podem atrasar ou interromper a menstruação. Portanto, qualquer alteração atípica no ciclo menstrual deve ser investigada. "A gente recomenda que as pacientes observem as alterações menstruais por uns três meses, se possível", explica.

Aline reforça que o ciclo menstrual regular não é aquele que desce mensalmente no mesmo dia. "A menstruação pode vir até dez dias antes ou depois e ainda ser regular".

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