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O mar é feito ponte
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O mar é feito ponte

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Com destreza, o corpo magro e ainda jovem encaixa-se na cacunda do fotógrafo e num instante sobe a casinha. Chamada assim, a estrutura capenga de concreto e metal no terço final da Ponte Velha é o trampolim improvisado dos meninotes para o mar azul-verdinho. Sérgio Rocha, 34, desce, sem se molhar, e relembra que se assim o fizesse levaria uma coça dos amigos de infância. Se 'atrepasse' na casinha, lá pelos 9, 10 e adentrando a adolescência, o derradeiro destino tinha de ser o mar. Os pulos da Ponte Velha, a ponte metálica, primeiro porto de Fortaleza, para a imensidão d'água, são feito rito de passagem para quem nasce no Poço da Draga.

 

A comunidade que tem de quintal um pedaço de orla com vista para o navio Mara Hope é o lar de Sérgio. Mas é mais: guia de visitas da comunidade, geógrafo, membro do conselho gestor da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) do Poço, Sérgio vê a existência dele e dos seus incrustada naquela areia, como ostra que se prende. "Sem essa praia, não tem Poço da Draga, não tem identidade, não tem vida".

Filho de mãe de Itarema e de pai de Tabuleiro do Norte, Sérgio conta sua história embriocada com a da comunidade, como se fora uma coisa só - bem adquirido pelo ofício de guia. Com a fala de quem pensa mais rápido do que a boca consegue acompanhar, ele comenta da ponte, do passatempo, da marca dos trilhos do bondinho como lembrança pueril; e também de como ali era um trapiche de madeira, que passou a ser a ponte de metal em 1906, de onde saiam as alvarengas com mercadoria, e que depois foi revestida de concreto em 1928.

Descreve o movimento que viu no crepúsculo de sua adolescência, quando surgiu o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, e a apreensão da comunidade de ser desterrada, e vai emendando que as casas de shows eram os antigos galpões da indústria naval, abandonados em 1951, quando o porto mudou-se para o Mucuripe. Fala da brincadeira de meio de rua, da "baciínha" e da "baciona" (umas piscinas naturais que se formam no coral e por onde se inicia a cumplicidade de menino e água), de como o mar é o sal da vida das 450 famílias; e já encadeia com a convivência com as quase ruínas de um aquário fantasma - o que assombra é sair dali. Por isso, sempre volta.

Sérgio é da primeira leva de moradores que entraram em universidades públicas. Foi estudar Geografia na Uece, levou o Poço consigo, debruçou-se sobre o geo-reordenamento do lugar, começou as visitas e hoje traz a universidade para dentro do Poço. Guia, com seu Expresso, os grupos pela comunidade: mostra o Pavilhão, que chama de as Irmãzinhas, que era escola onde ele mesmo estudou; aponta para o casarão dos Boris; conta da alfândega que hoje é a Caixa Cultural. Mas diz também da costureira Dona Zenir, do Seu Zé Alemão, da Dona Nilse do trilho, e de Seu Lôro, morador antigo, que no meio do passeio é convidado: "Agora, Seu Lôro, fale aí, que eu  já tô com a garganta seca", intima Sérgio.

"É atividade que resgata o entusiasmo de pertencimento de quem aqui vive. E o Expresso, em cinco anos, se tornou uma das formas de ir de encontro ao estereótipo de comunidade criminalizada, marginalizada, em delinquência pujante, porque ele enaltece as potencialidades que se têm aqui. A gente fala da vulnerabilidade, diz da desassistência, mas nós somos mais. E quem vem, volta".

E vão sendo resistência, Sérgio e o Poço. Para o ano, puxado pelo Movimento ProPoço e pela ONG Velaumar, celebram 113 anos - pegam emprestado a data de construção da ponte para inaugurar o povoado. Não à toa. A ponte embrenha-se no Poço, é rua estrutural, é ela quem traz a praia para dentro de casa. "Estar na ponte, olhar pra isso, é conseguir palpar a minha existência", define Sérgio, enquanto toca um reggae na caixinha de som do moço que comemora o fio da vara que repuxa - é que ele fisgou um peixe.

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