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"Cada vez mais jornalistas são mortos no mundo"
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"Cada vez mais jornalistas são mortos no mundo"

Emmanuel Colombié, diretor do Repórteres Sem Fronteiras na América Latina, discute a relação entre crise política e o aumento no número de casos de jornalistas agredidos e assassinados
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[FOTO1] Três jornalistas foram assassinados no Brasil em 2018, todos radialistas de cidades do interior da Bahia, Pará e Goiás. De acordo com barômetro da organização internacional Repórteres Sem Fronteira (RSF), 57 jornalistas foram assassinados em todo o mundo no mesmo período. O número já ultrapassou o balanço final de 2017, quando 55 profissionais da imprensa foram vitimados. "Essa é a tendência", avalia o jornalista francês Emmanuel Colombié, diretor da RSF na América Latina.

Em entrevista ao O POVO, Colombié analisa o aumento dos casos de agressão em países que passam por crise política acentuada e comenta o cenário Brasileiro, em que 141 jornalistas foram agredidos - física ou virtualmente - dentro do contexto eleitoral. Também fala sobre a crise de credibilidade vivida pelos veículos tradicionais de mídia e propõe estratégias de combate às notícias falsas. 

O POVO - A plataforma de acompanhamento dos casos de agressão contra jornalistas e contra a liberdade de imprensa do Repórteres Sem Fronteira cita a ausência, no Brasil, de um mecanismo nacional que proteja os jornalistas que se encontram em perigo. Também cita o clima de impunidade, alimentado por uma "corrupção onipresente", que dificultaria ainda mais o trabalho desses profissionais. Como você analisa esse quadro? O que isso tem a ver com o momento de instabilidade política que vivemos?

Emmanuel Colombié - Estamos preparando um comunicado sobre isso, sobre a ameaça que pode significar a eleição de Bolsonaro para o País. No Brasil, como no México, existe um clima de trabalho complicado para jornalistas que vão investigar temas que têm a ver com política, corrupção e crime organizado. De maneira quase sistemática, aqueles jornalistas - que geralmente são independentes, ou blogueiros que trabalham em zonas longe dos centros urbanos, profissionais que divulgam informações que podem incomodar poderes econômicos, políticos, religiosos - vão estar em uma situação de vulnerabilidade. Vão receber ameaças, online ou verbais. Ou podem ser assassinados. No Brasil, temos três casos de assassinato de jornalista em 2018, todos radialistas que foram mortos por falar de temas de corrupção local e conexões entre política e crime organizado.

O POVO - E esses três casos são de jornalistas que atuavam no interior.

Emmanuel Colombié - Isso é um grande problema. Longe dos grandes centros urbanos, eles não têm nenhum tipo de proteção, nenhuma instância para reclamar, pedir justiça. Nessas cidades, há uma preocupação específica com os radialistas, que têm uma liberdade de palavra um pouco maior, estão falando o dia todo, comentando as atuações dos funcionários públicos. Eles não têm nenhum tipo de apoio, de medidas de proteção básica. Os agressores chegam nas rádios e matam os radialistas. As conexões entre crime organizado e política num nível local geram esse tipo de ataque. É responsabilidade do poder público falar do assunto e propor capacitações. Eles estão totalmente sozinhos.

O POVO - Recentemente o Ministério dos Direitos Humanos passou a incluir comunicadores e ambientalistas no escopo do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Vocês estão acompanhando a evolução desse programa?

Emmanuel Colombié - Estamos ajudando na identificação dos casos de jornalistas ameaçados e definindo padrões de situações de risco, perfil das vítimas, dos agressores. Agora, os jornalistas ameaçados também podem contar com entidades públicas para medidas de proteção, de apoio e ajuda. Isso é muito positivo, é fruto de um trabalho de muitos anos, de pressões da sociedade civil, do Repórteres Sem Fronteira e outras organizações. Foi um passo importante. Mostra que o governo brasileiro, por meio dos ministérios, sabe que há um problema real de vulnerabilidade. Mas não significa que está tudo resolvido.

O POVO - Qual o perfil dos agressores?

Emmanuel Colombié - No Brasil, especificamente, são pessoas públicas, funcionários públicos que podem ser membros de prefeituras, policiais… Ainda falta uma vontade política de atacar o problema.

O POVO - Essa falta de vontade também aparece nesse período de campanha eleitoral, com a falta de resposta efetiva dos candidatos em relação aos casos de agressão.

Emmanuel Colombié - Nenhum candidato falou abertamente de tema ligado à expressão, à imprensa, à importância da imprensa livre, independente. O assunto não está no centro do debate público. É um problema. Não existe democracia sem imprensa livre e independente.

O POVO - O aumento no número de casos de agressão está ligado a essa crise de credibilidade da imprensa? Tem a ver, em última instância, com essa cenário de proliferação das notícias falsas?

Emmanuel Colombié - É um tema complexo, a desinformação, a propagação das fake news. O desenvolvimento da internet e das redes sociais é uma grande vantagem para a liberdade de expressão em geral, para a liberação das vozes, para os jornalistas sem recursos para trabalhar. Mas há uma contrapartida, infelizmente. Há a interferência de grupos de interesse político e econômico. É tão fácil ameaçar um jornalista no Twitter e no Facebook. É tão fácil propagar notícias falsas, porque até agora não existe regulação suficiente para proteger a circulação das notícias verdadeiras. Isso cria uma abundância de elementos que atrapalham a liberdade de informação. Dentro desse contexto, temos jornalistas que agora fazem fact-checking, conferindo as informações difundidas. As notícias falsas são 4 ou 5 vezes mais compartilhadas que as verdadeiras. É uma velocidade incrível. Nós temos uma iniciativa no Repórteres sem Fronteira, em construção, que encara o problema ao revés. Junto com agências de conteúdo, agências de propaganda, editores e legisladores, estamos criando um programa que, ao invés de castigar os produtores de notícias falsas, quer recompensar os jornalistas que respeitam um processo padrão de produção da informação - ético, profissional e deontológico. Serão recompensas diversas, como uma melhor colocação nos motores de pesquisa, ou ser favorecido por anunciantes. As fake news são cada vez mais preocupantes. Os eleitores de Bolsonaro, por exemplo, se informam por Whatsapp, abandonaram as fontes tradicionais porque não confiam no trabalho da imprensa. Estão numa paranoia. É um problema pra imprensa em geral, de credibilidade. Esses eleitores usam o Whatsapp para difundir informações falsas, para desmontar artigos verdadeiros, para alimentar a teoria do complô. É uma característica bem brasileira que diz muito sobre a falta de influência e independência da mídia brasileira. Existe uma desconfiança geral. O problema central é a educação. Há uma falta de educação sobre o papel da imprensa, sobre a importância e a independência da mídia.

O POVO - É um cenário que se repete na América Latina?

Emmanuel Colombié - A situação não é muito melhor na maioria dos países do continente. O México é ainda mais complicado, mais violento. Jornalistas mexicanos são assassinados quase todos os meses. O país tem uma história culturalmente violenta. E há países em crise, como Venezuela e Nicarágua, onde trabalhar como jornalista independente e fazer cobranças está quase impossível. Os governos desses países estão desenvolvendo sistemas de censura estatal que tentam silenciar vozes críticas. É uma censura institucional que se concretiza em muitas coisas. Na Venezuela há ainda o tema da escassez do papel, porque o governo tem o monopólio da distribuição. Na Nicarágua, jornalistas que vão cobrir manifestações são atacados, agredidos sistematicamente pela polícia. Na Venezuela, muitos jornalistas internacionais são diretamente expulsos quando chegam ao aeroporto. Em Cuba, pior país da América Latina para a liberdade de imprensa, não tem assassinato, mas não tem imprensa privada, é proibida pela constituição. Pessoas que tentam fazer jornalismo independente, os blogueiros, são expulsos, ameaçados.

O POVO - E os bons exemplos no continente?

Emmanuel Colombié - Há países com uma certificação melhor. A Costa Rica tem um marco legal muito bem feito, bons níveis de liberdade de expressão. É um bom modelo. No Chile, apesar dos problemas dos jornalistas investigativos, que são perseguidos pela justiça, também há um marco legal favorável. No Uruguai, há um pluralismo interessante.

O POVO - Então, pode-se dizer que a liberdade de imprensa se vê mais comprometida em países que passam por turbulência política, com instabilidade de governos extremos de direita ou esquerda?

Emmanuel Colombié - O papel da imprensa em um país que atravessa uma crise política é fundamental. É muito comum que países que atravessam crises políticas tentem calar e silenciar vozes dissidentes, críticas. Alguns países têm sistemas legais que permitem essa censura, como a Venezuela. Em outros já há uma diversidade de vozes. Os jornalistas são fundamentais, e justamente por isso são alvos de ataques diretos. Mas essas pessoas estão atacando os alvos errados. Os jornalistas são intermediários responsáveis pela difusão das informações. É muito fácil atacar um jornalista, mas isso não resolve nada.

O POVO - Em 2017 foram assassinados, em todo o mundo, 55 jornalistas. Até agora, em 2018, são 57.

Emmanuel Colombié - A situação não melhorou muito. Divulgamos um comunicado na semana passada para avisar que em outubro ultrapassamos os dados de 2017. O balanço de 2018 vai ser bem pior. Cada vez mais jornalistas são mortos no mundo. Essa é a tendência.

 

Sobre a série 

O POVO publicou ontem reportagem em três partes sobre o cenário de incremento nos registros de agressão contra jornalistas em contexto eleitoral no Brasil. A partir de levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), especialistas discutiram o papel da imprensa nesse momento de crise e investigamos as propostas dos candidatos à presidência relacionadas à garantia da liberdade de expressão. Também trouxemos uma análise do quadro de violência na América Latina.

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Abraji 

Jornalistas vítimas de agressão física ou virtual no exercício da profissão podem denunciar o caso à Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) pelo telefone (11) 3159 0344 ou pelo e-mail abraji@abraji.org.br

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