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Uma nova casa, a mesma floresta
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Uma nova casa, a mesma floresta

| PLANEJAMENTO URBANO | Moradores do Dendê são deslocados para novo residencial em projeto do Governo Estadual erguido às margens do Parque do Cocó
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Nos últimos quilômetros de seu trajeto em direção ao mar, o Rio Cocó se aproxima da comunidade do Dendê, espalhada em uma ampla faixa por trás da Universidade de Fortaleza (Unifor) e do Fórum Clóvis Beviláqua, no bairro Edson Queiroz. As residências e barracos da área, a maioria erguida de maneira informal, abriga moradores que nasceram e se criaram em relação de quase dependência com parque e rio do Cocó. No ano passado, o Governo do Estado deslocou 600 dessas famílias para outra área.

E essa outra área, suprema ironia, está às margens da Área de Proteção Permanente (APP). Batizado como Residencial Dona Yolanda Vidal Queiroz, o terreno tem 126.671,38m² e foi preparado com autorização da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Imagens de satélite mostram o tamanho da área desmatada e elevada por meio de aterramento. Uma fonte que preferiu não se identificar, moradora da área, compartilhou conosco vídeos do momento em que as árvores eram derrubadas: "Uma das cenas mais tristes que já vi, pássaros desesperados, dando rasante".

Segundo a Sema, a supressão vegetal atingiu 177 árvores. A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) autorizou o manejo da fauna - o que envolve a captura, coleta e transporte de animais nativos. Consultada por O POVO, a Secretaria das Cidades, órgão estadual responsável pelo Projeto Dendê, respondeu com nota enfática: "A obra tem todos os licenciamentos nos órgãos competentes e não houve invasão de APP". Também citaram a compensação ambiental, o "compromisso de plantio de 1.899 árvores em área a ser definida".

"Reprovo integralmente o processo de desmatamento, terraplanagem e compactação do solo do Residencial Yolanda Queiroz", diz o biólogo Gabriel Aguiar, membro titular do conselho gestor do Parque Estadual do Cocó e membro do Comitê de Gestão Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC). Gabriel, que pesquisa a região do Dendê desde 2017, classifica como absurda a escolha daquele lugar para a construção do residencial. "As entidades ambientais não foram ouvidas, o debate não foi tornado público. Agora que a habitação foi consolidada, cabe fazer um manejo integrado de tudo isso, considerando a satisfação da comunidade e o respeito ao meio ambiente", explica.

E quando o assunto é a satisfação da comunidade, as opiniões passam longe da unanimidade. O aposentado Euri Façanha, que convive com a comunidade do Dendê há pelo menos cinco anos, diz que há elogios e reclamações frequentes. "Muitos usavam a mata para caçar e pescar. Agora, estão sem comer. Não conseguem pagar água e luz. Ainda precisam fazer um caminho pro ônibus entrar. Alguns até abandonaram as casas novas, venderam por uma mincharia. Um rapaz abriu uma padaria, mas tem muita dificuldade, os caminhões de entrega nem querem entrar lá", conta.

Entre os moradores que ainda estão no Dendê e aguardam remoção para a nova casa - 600 famílias já foram removidas, outras 480 ainda serão -, as expectativas também não são totalmente positivas. "Tem gente apavorada, muitos não querem ir, têm medo. Na comunidade eles têm seu pezinho de limão, de mamão, pra vender e pra comer mesmo. No residencial não tem nada disso", conta Façanha.

A proximidade dos moradores com o entorno da floresta e a geração de dependência que se estabelece estão ligadas a uma série de prejuízos e benefícios para o meio. "A comunidade da região, sobretudo no empreendimento, utiliza bastante a floresta e o rio, principalmente para lazer e pesca. Toda atividade humana vai, intrinsecamente, gerar algum impacto", explica Gabriel. Enquanto algumas pessoas utilizam o espaço para "meditação, contemplação e um lazer respeitoso", outros "degradam intencionalmente e praticam caça esportiva".

Vários moradores da área compartilharam com O POVO imagens que atestam a interferência do residencial no equilíbrio do entorno. Segundo um deles, durante as chuvas fortes do mês de março as águas do rio Cocó chegaram a aproximadamente 15 metros do tapume de metal colocado para marcar as dimensões do terreno. Também denunciaram aterramentos de riachos e interferência na faixa de mangues. Façanha disse que, se na baixada do Dendê os moradores estavam habituados aos alagamentos, agora "eles não sabem o que fazer, estão sem orientação nenhuma". Até agora, não foi registrado nenhum alagamento no residencial, com exceção de um espaço onde crianças costumavam jogar bola na área do mangue. Mesmo assim, moradores temem pelas precipitações de maior porte.

Procurada por nossa equipe, a Secretaria das Cidades afirmou que o residencial está fora da poligonal do Parque do Cocó e que todos os cuidados ambientais foram tomados pela Sema.

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