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Famílias de presos fazem 40 denúncias de maus-tratos por semana; nenhum caso foi confirmado
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Famílias de presos fazem 40 denúncias de maus-tratos por semana; nenhum caso foi confirmado

São 40 denúncias por semana. Entidades classificam as reclamações como genéricas, mas cobram agilidade na averiguação dos casos
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PROTESTO de mulheres de presos em frente ao Fórum Clóvis Beviláqua (Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA PROTESTO de mulheres de presos em frente ao Fórum Clóvis Beviláqua

Desde o início das intervenções realizadas pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), com a mudança nos procedimentos adotados na custódia dos presos, uma média de 40 denúncias de tortura ou maus-tratos foi recebida, por semana, pelo Ministério Público do Ceará (MPCE). Todas foram apresentadas por familiares dos presos. Nenhuma delas, contudo, foi confirmada.

De acordo com o promotor Nelson Gesteira, membro do Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc) e da Promotoria de Justiça de Corregedoria de Presídios e Penas Alternativas, as reclamações chegam por diversos canais. Na maioria, são queixas genéricas. Os nomes das supostas vítimas ou reclamantes não são informados. Para ele, isso dificulta, mas não impede a checagem.

"Estamos recebendo uma infinidade de denúncias. E verificamos todas. Toda semana visitamos as unidades. Entrevistamos agentes, gestores, terceirizados, médicos e os próprios presos, claro. E não há reclamação de maus-tratos por parte deles", afirma.

Um grupo de esposas dos detentos, contudo, discorda. No último dia, 29, várias delas aguardavam atendimento na sede do Núcleo Especializado em Execução Penal (Nudep), da Defensoria Pública do Ceará, no bairro Luciano Cavalcante. Buscavam informações dos filhos e companheiros, muitos deles transferidos de unidade. Em conversa com O POVO, elas argumentaram que os internos teriam receio de confirmar as denúncias.

"Eles não dizem que foram torturados porque, se confirmarem, apanham", justificou uma das mulheres. "Tem dias que eles ficam sentados nus, com as mãos na cabeça, debaixo de sol e chuva, das 6 horas da manhã às 8 horas da noite. E, se reclamarem, vão para a tranca. Lá, eles apanham, não bebem água, não tomam banho e ficam no escuro", completa outra esposa. Ambas preferiram não se identificar.

Gesteira garante que todas as queixas são checadas pessoalmente pelos promotores. "A gente chega a fotografar os detentos que são identificados, sem camisa, para manter um registro comprovando que não houve a tortura", detalha. Ele assegura que continuará fiscalizando as unidades para garantir a integridade, alimentação e atendimento médico e jurídico aos internos.

Para o promotor, o ambiente no sistema está "salubre". Antes, disse Gesteira, a sujeira das celas escondia ilícitos, como drogas, celulares, serras e até mesmo túneis. "Em xadrezes poluídos, o agente evita entrar. Ninguém gosta do mau cheiro. E não havia vistoria. Agora, o chão e as paredes das celas estão lavados, banheiros desentupidos, tudo limpo", observa.

O promotor defende que a "doutrina" adotada pelo secretário Mauro Albuquerque está prevista na Lei de Execução Penal (LEP) e consiste em vistorias e revistas permanentes, nas celas e nos presos. "O que causa estranheza é que o Estado do Ceará, e eu me considero parte do Estado, parte do problema e da solução, não tenha aplicado isso desde sempre. São técnicas previstas até nos manuais da ONU (Organização das Nações Unidas). São antipáticas, mas são corretas", completa.

ONDE DENUNCIAR

Denúncias de maus-tratos podem ser feitas na Defensoria Pública do Ceará, na Av. Almirante Maximiano da Fonseca, 100, bairro Engenheiro Luciano Cavalcante. Telefone: (85) 3101 3437

Disque 100

É o número da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, que recebe denúncias de maus-tratos e tortura. Funciona 24 horas, inclusive nos fins de semana e feriados. A discagem é gratuita, de qualquer lugar do Brasil.

Ofícios são enviados à CGD e ao Comitê de Combate à Tortura

As denúncias de maus-tratos e tortura registradas na Defensoria Pública do Ceará não ficam restritas à entidade. De acordo com Bruno Neves, coordenador do Núcleo Especializado em Execução Penal (Nudep), a cada reclamação, um termo de declaração é lavrado e encaminhado, por meio de ofício, aos órgãos competentes.

Os casos são comunicados à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e ao Comitê Cearense de Combate à Tortura, além dos defensores que atuam nas próprias unidades.

"As esposas dizem que os companheiros estão levando muito gás de pimenta, apanham, ficam nus. Elas têm alegado isso. A maioria desses relatos é genérica, mas a gente tem dialogado com a SAP para que esses novos procedimentos e rotinas não violem a LEP. O secretário se comprometeu em apurar as denúncias e repetiu, várias vezes, que fará tudo dentro da legalidade", disse Neves, ao ressaltar que nenhum dos casos foi confirmado.

O coordenador antecipou que nos próximos dias a Defensoria irá ministrar um curso sobre Mecanismo Nacional de Combate à Tortura aos defensores do Estado, sobretudo àqueles que atuam nas audiências de custódia, para capacitá-los quanto à identificação desse tipo de crime.

Neves afirmou ainda que já foram realizadas várias inspeções nos presídios cearenses e que a Defensoria continuará acompanhando a situação. Uma força-tarefa foi montada para analisar a situação processual dos internos, em parceria com a SAP, envolvendo os núcleos de Execução Penal e de Atendimento aos Presos Provisórios. O objetivo é traçar um raio-x de cada unidade.

A presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), Ruth Leite Vieira, cobrou mais transparência nos procedimentos adotados pela SAP. Segundo a advogada, apesar de não confirmadas denúncias recebidas, há lentidão nos retorno das demandas enviadas à secretaria. "A gente se ressente da falta de condições de inspeção e transparência no sentido de que os nossos questionamentos sejam respondidos com brevidade. Tivemos cortada, inclusive, a viatura oficial para as inspeções", disse Ruth.

Ruth Leite afirmou que discutiria a situação com o secretário Mauro Albuquerque. "A gestão não está conseguindo fluir com as demandas que vêm depois da intervenção, sejam reclamações de torturas, maus-tratos ou busca de informações pelas famílias", criticou.

Em nota, a SAP negou "veementemente qualquer denúncia de maus-tratos dentro das unidades". A secretaria destacou que atua dentro da legalidade e que não houve, até o momento, "nenhuma denúncia com elementos que possibilitem uma investigação".

A pasta afirma que casos concretos serão encaminhados à Polícia Civil e que instituições como Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) têm realizado vistorias nas unidades. "A secretaria tem adotado uma série de medidas para disciplinar as unidades prisionais, obedecendo à lei", diz o texto. "O empréstimo de carros às entidades vinculadas é feito mediante a disponibilidade diária", completa.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 29-01-2019: Bruno Neves, defensor público. Defensoria Pública do Ceará, atende esposas de presos, em sua sede, na rua Caio Cid, no bairro Edson Queiroz. (Foto: Mauri Melo/O POVO).
FORTALEZA, CE, BRASIL, 29-01-2019: Bruno Neves, defensor público. Defensoria Pública do Ceará, atende esposas de presos, em sua sede, na rua Caio Cid, no bairro Edson Queiroz. (Foto: Mauri Melo/O POVO).

Reclamações. Defensoria encaminha ofícios à CGD e ao Comitê de Combate à Tortura

As denúncias de maus tratos e tortura registradas na Defensoria Pública do Ceará não ficam restritas à entidade. De acordo com Bruno Neves, coordenador do Núcleo Especializado em Execução Penal (Nudep), a cada reclamação, um termo de declaração é lavrado e encaminhado, por meio de ofício, aos órgãos competentes.
Os casos são comunicados à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e ao Comitê Cearense de Combate à Tortura, além dos defensores que atuam nas próprias unidades.
“As esposas dizem que os companheiros estão levando muito gás de pimenta, apanham, ficam nus. Elas têm alegado isso. A maioria desses relatos é genérica, mas a gente tem dialogado com a SAP para que esses novos procedimentos e rotinas não violem a LEP. O secretário se comprometeu em apurar as denúncias e repetiu, várias vezes, que fará tudo dentro da legalidade”, disse Neves, ao ressaltar que não nenhum dos casos foi confirmado.
O coordenador antecipou que nos próximos dias a Defensoria irá ministrar um curso sobre Mecanismo Nacional de Combate à Tortura aos defensores do Estado, sobretudo àqueles que atuam nas audiências de custódia, para capacitá-los quanto à identificação desse tipo de crime.
Neves afirmou ainda que já foram realizadas várias inspeções nos presídios cearenses e que a Defensoria continuará acompanhando a situação. Uma força-tarefa foi montada para analisar a situação processual dos internos, em parceria com a SAP, envolvendo os núcleos de Execução Penal e de Atendimento aos Presos Provisórios. O objetivo é traçar um raio-x de cada unidade. (Thiago Paiva)


Serviço
Denúncias de maus tratos ou tortura podem ser comunicadas à Defensoria Pública:
Endereço: Av. Almirante Maximiano da Fonseca, 100.
Bairro: Engenheiro Luciano Cavalcante.
Contato: (85) 3101 3437
Disque – 100 - Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos

Entidades relatam dificuldade

Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), Beatriz Xavier, levanta outra discussão ligada à situação dos presos: a da classificação da tortura. "Ela tem um significado mais amplo que o castigo físico. Tem a ver com privação de condições mínimas de dignidade da pessoa, como restrição do acesso à água para consumo, higiene, alimentação, falta de iluminação e temperatura adequada. Tudo isso, em grau avançado, se caracteriza como tortura", defende.

Ela confirma recebimento de denúncias, como uso excessivo de spray de pimenta e da "posição de procedimento", quando os detentos ficam sentados, desnudos ou apenas de calção ou cueca, cabeça baixa e mão na nuca. "O relato é que, em algumas CPPLs, eles ficam nessa posição por mais de oito horas. Há, contudo, dificuldades para checar as informações".

A falta de uma estrutura definitiva de funcionamento para o CEDH, ligado à Secretaria de Proteção Social, Justiça, Mulheres e Direitos Humanos, interfere na fiscalização. Titular da pasta, a secretária Socorro França garantiu ao O POVO que a situação será resolvida tão logo o decreto que regulamenta a reforma administrativa do Estado for publicado. "Acredito que até ainda esta semana a situação estará normalizada", assegura.

Membro da Pastoral Carcerária, o padre Marcos Passerini também se queixa da dificuldade de averiguar as denúncias, mas em razão de suposta resistência da SAP. "A única maneira de desfazer o 'disse me disse' é as entidades entrarem, ter contato com os presos. Somos o olhar de fora, o olhar da sociedade, o contraponto entre as famílias e o sistema. Essa é minha angústia: não podermos dizer se as denúncias são verdadeiras ou não".

Passerini reconhece que a situação é atípica, sobretudo por conta da superlotação, o que exige medidas de segurança. Entretanto, o padre defende a criação de procedimentos que permitam a checagem. Sobre a nova doutrina obedecer à legislação, questiona: "Quais os limites da legalidade? Estão fazendo em duas semanas o que não se fez em 20 anos".

Em nota, a SAP afirmou que "as visitas das entidades religiosas serão permitidas mediante atualização dos cadastros junto à Coordenadoria Especial do Sistema Penitenciário" e que "o uso de instrumentos como spray de pimenta é feito dentro da legalidade e apenas quando estritamente necessário".

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