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Mutagênese letal: conheça o processo que pode ser uma estratégia contra o coronavírus

Mecanismo que busca provocar erros durante a mutação do vírus tem sido alvo de estudos que investigam uma possível forma de barrar a Covid-19

 

Até agora não há tratamento ou vacina para barrar o coronavírus, que já matou mais de 1 milhão de pessoas e infectou outras 38 milhões no planeta. Porém, cientistas estudam se seria possível usar a própria tática de multiplicação do vírus contra ele mesmo, provocando um processo conhecido como mutagênese letal para abalar a infecciosidade do vírus.

Acontece que para “derrotar” o sistema imunológico humano, o coronavírus se replica rapidamente, acumulando mutações. Isso pode ter vantagens para o vírus, que fica mais resistente a medicações.

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Contudo, se essas mutações acontecerem demais e trouxerem alterações específicas podem acabar resultando em cópias de vírus defeituosas, que terão dificuldades de se multiplicar e perderão sua eficácia.

Para entender melhor esse processo da mutação, é preciso saber que qualquer ser vivo tem seu código genético. “Que é como se fosse um livro de receita. O código genético do coronavírus tem as instruções para criar um novo coronavírus”, compara o médico infectologista Keny Colares.

Pesquisador e coordenador do Grupo de Pesquisa em Virologia, da pós-graduação da Universidade de Fortaleza (Unifor), Colares explica que esse código genético pode sofrer alterações, sendo que os vírus toleram muito melhor esse tipo de variação do que os seres humanos, por exemplo.

O vírus que causa a Covid-19 é um vírus de RNA, ou seja, seu material genético é ácido ribonucléico, em vez de DNA (ácido desoxirribonucleico). Por serem mais simples, os vírus de RNA toleram frequências de mutações mais altas.

“Essa estratégia [da mutagênese letal] tende a acelerar um processo que todos os seres vivos já têm, mas esses vírus de RNA têm mais. Acelerar esse processo ao ponto de causar danos ao vírus, fazer com que ele danifique o próprio ‘livro de receitas’, sendo assim ele não é mais capaz de fazer um vírus que funcione”, completa Colares, que trabalha no Hospital São José (HSJ), em Fortaleza.

A professora Silvia Helena Rabenhorst, titular em Genética Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), reforça que o aumento da taxa de mutação pode tornar os vírus inviáveis por ocasionar alterações que mudam as informações codificadas no seu material genético.

“Isso quer dizer que proteínas importantes para o vírus, como as importantes para sua replicação, podem sofrer alterações que as tornam ineficientes”, esclarece.

Rabenhorst também é coordenadora do Laboratório de Genética Molecular (Labgem), onde desenvolve estudos na área de oncologia e susceptibilidade genética à doenças infecciosas, e pós-doutora pela University of Colorado Health Science Center, em Denver, nos Estados Unidos.

A pesquisadora pontua, no entanto, que alcançar a mutagênese letal não é uma meta fácil e demanda o uso de drogas. Além disso, a taxa de mutação induzida deve ser mais alta que a suportada pelo vírus ou deve ocorrer em genes relevantes, mudando negativamente a sua função.

“Isso porque mutações são também a estratégia evolutiva dos vírus, as quais os possibilita infectar espécies diferentes e os tornam mais eficientes, quando, como exemplo, aumentam a afinidade pelos receptores para entrada na célula hospedeira”, acrescenta.

Como se descobriu a mutagênese letal

O virologista Esteban Domingo, do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri, na Espanha, foi pioneiro em demonstrar que os vírus de RNA se multiplicavam cometendo erros até acabar formando o que o cientista denomina "nuvens de mutantes".

Em entrevista à BBC News Mundo, o cientista resume o que concluiu sobre a mutagênese letal: "Mutar até a morte significa que um excesso de mutações faz com que as proteínas sintetizadas pelo vírus tenham tantas alterações que não funcionam bem.”

Domingo desenvolveu o conceito há três décadas, quando passou um ano sabático na Universidade da Califórnia em San Diego no laboratório do professor John Holland, durante o ano acadêmico de 1989-1990.

"Realizamos um estudo com vírus RNA para ver se os prejudicava o fato de aumentarmos sua taxa de erro (nível de mutação) por meio de agentes que causam mutações. O resultado foi claro. Os vírus que já sofrem muitas mutações não conseguem manter sua infecciosidade se forem estimulados a sofrer mais mutações", relata.

Conforme Domingo, ele e os colegas foram inspirados em uma previsão da chamada teoria da quasi-espécie, desenvolvida pelos professores Manfred Eigen (Prêmio Nobel de Química em 1967) e Peter Schuster, na Alemanha, que diz que um excesso de mutações é incompatível com a manutenção da informação genética.

Ao longo da última década, foram desenvolvidos medicamentos que aumentam os erros dos vírus durante sua replicação, mas não os erros nas células dos organismos hospedeiros.

Um desses medicamentos é o favipiravir, que tem diferentes mecanismos de ação e um deles é a mutagênese letal, em que "engana" o vírus para que ele cometa mais erros.

É como se o remédio atuasse como uma “letra híbrida” no “livro de receitas” (código genético) do vírus. O vírus o reconhece e o incorpora, mas quando vai copiá-lo não sabe discernir “qual letra” é aquela.

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Aplicações no caso da Covid-19

Dentre vários estudos sobre o efeito do favipiravir nos vírus de RNA, um deles foi publicado em 2014 por Armando Arias, virologista da Universidade de Castilla-La Mancha, na Espanha, e pesquisador de RNA.

A pesquisa, realizada quando Arias estava na Universidade de Cambridge, foi feita com camundongos infectados pelo norovírus, um vírus RNA que causa vômito e diarreia. Os roedores foram curados com o tratamento com favipiravir devido à ação mutagênica desse composto, segundo Arias afirmou à BBC News Mundo.

Também houve estudos em humanos com o vírus ebola sugerindo que o favipiravir tem um efeito positivo quando o tratamento é iniciado logo no começo da doença. A investigação agora é para saber se medicamentos que causam mutagênese letal poderiam ser eficazes no caso do novo coronavírus.

Segundo Esteban Domingo, há dois artigos publicados este ano “com resultados muito encorajadores com o vírus Sars-Cov-2, o que estimula mais pesquisas sobre esta estratégia."

Um desses trabalhos é liderado pelo cientista americano Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Baric e seus colegas testaram em laboratório uma droga experimental que causa mutagênese letal, EIDD-2801, em células epiteliais humanas infectadas com Sars-Cov-2.

Outro experimento observou o efeito do favipiravir em culturas de células derivadas de macacos verdes africanos infectados com Sars-Cov-2 e mostrou que “é possível, em princípio, desacelerar o crescimento do Sars-Cov-2 usando compostos como o favipiravir", segundo Olve Peersen, professor da Colorado State University nos Estados Unidos e um dos autores desse estudo.

Peersen acredita, entretanto, que o potencial terapêutico do favipiravir contra a Sars-Cov-2 em humanos é baixo. "Nossos dados mostram que nas culturas em laboratório precisávamos de concentrações muito mais altas do que o que poderia ocorrer no corpo humano", disse à BBC News Mundo.

Atualmente, existem mais de 30 estudos clínicos sobre o efeito do favipiravir em pacientes com Covid-19, conforme levantamento da BBC News. Tanto o favipiravir quanto a ribavirina (usada contra a hepatite C) estão na lista de candidatos a tratamentos experimentais contra a Covid-19 publicada pela Organização Mundial da Saúde em 28 de abril.

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Perspectivas para o futuro

Para os pesquisadores consultados pelo O POVO, apesar de ser uma estratégia que vem sendo estudada há algum tempo, a mutagênese letal ainda não tem tantos casos concretos de sucesso.

O infectologista Keny Colares analisa que estudos de drogas como o favipiravir ainda estão em fase inicial e não visualiza aplicações a curto prazo. “Ainda não existe muita experiência em termos de utilização em seres humanos para saber se ela vai reduzir as complicações e os óbitos [por Covid-19] ou chegar até a cura”, pondera.

Já a geneticista Silvia Helena Rabenhorst atenta que há indicação de que para tratamento do coronavírus o uso do favipiravir tem algumas limitações. Isso porque as doses efetivas são altas e ela tem baixa solubilidade.

Ela avalia que uma alternativa seria a combinação de drogas e cita também um estudo japonês publicado em setembro que mostrou que pacientes com pneumonia foram tratados com sucesso numa combinação de lopinavir/ritonavir e favipiravir, indicando mais uma possível opção de tratamento. 

Apesar disso a pesquisadora ressalta que ainda há muito para aprender sobre o genoma do Sars-Cov-2 e a relação das suas moléculas com a célula hospedeira para garantir a infecção.

“O vírus é novo, diferente de todos que conhecemos, mas vale lembrar que nunca os cientistas foram tão longe em tão pouco tempo na aquisição do conhecimento de uma doença, desde a identificação do agente etiológico às possibilidades de tratamento e prevenção. Portanto, investir em conhecimento continua a nossa saída para identificar estratégias para tratamentos e vacinas efetivas”, finaliza.

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