A pandemia do coronavírus "antecipa o luto" e altera rituais de despedida
Pacientes com mortes solitárias e familiares que não se despedem. A doença está mudando a forma como as pessoas vivenciam a perdaMortes solitárias, ausência de rituais. Em meio à pandemia do novo coronavírus, visitas a pacientes internados em hospitais e a prática de procedimentos fúnebres, como velórios, são proibidos. Parentes e amigos de enfermos que vão a óbito em decorrência da doença ou de outras complicações, perdem a oportunidade de despedida e vivem um luto “antecipado” (e abreviado).
Em entrevista à Rádio O POVO CBN nessa segunda-feira, 4, Sarah Carneiro, psicóloga com 20 anos de atuação em perdas, luto e separação, afirmou que a pandemia está mudando a forma como “vivenciamos a morte”. De acordo com a especialista, fatores como o isolamento do paciente e a falta de comunicação com familiares agravam o processo de luto que, em “tempos normais”, já acontece de forma bastante dolorosa.
“São pacientes que não conseguem se comunicar, familiares sem informações e doentes muito sozinhos”, aponta Sarah. Segundo a psicóloga, essas condições, provocadas pela alta transmissibilidade do vírus, fazem com que o enfermo fique sem companhia no hospital e tenha uma “morte solitária”, “desaparecendo” de forma repentina da vida daqueles que o conhecem.
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AssineEsse sentimento de “desaparecimento” de um ente querido foi vivenciado pela dona de casa Cláudia Serra, de 43 anos. Há uma semana, a cearense perdeu a tia para a Covid-19. “A gente soube que ela estava doente em um dia e logo em seguida ela morreu”, informou, explicando que o processo foi “muito rápido” e que parece “não ter acontecido.”
Maria, a tia de Cláudia, tinha 72 anos e era diabética — estando, pelos dois motivos, no grupo de risco da doença. Nem a dona de casa e nem os demais parentes da vítima tiveram a oportunidade de visitá-la no hospital, assim como não conseguiram fazer um velório para se despedirem dela. “É como se a gente tivesse em uma nuvem de fumaça. Quando ela baixar é que nós vamos perguntar: 'Aconteceu? Ela não tá mais aqui?”, emociona-se.
Rituais de despedidas e o relógio do luto
De acordo com a psicóloga Sarah, rituais de despedidas como velórios são “extremamente importantes” para promoverem um “suporte” a quem perdeu alguém. A profissional afirma que essas pessoas, em uma época recente, poderiam vivenciar um tempo de luto marcado também por missas, onde encontrariam conforto em abraços de pessoas próximas e na religião. Com a pandemia, o “relógio do luto” se altera.
A especialista afirma que a ausência desses rituais de despedida faz com que aceitar a perda se torne um processo ainda mais complicado. “É difícil fazer essa integração da realidade quando eu deixei de ver um parente e nunca mais o vi, nem mesmo o seu corpo”, aponta Sarah.
Ainda de acordo com a psicóloga, a pandemia está fazendo com que novos rituais de despedida sejam construídos, por meio de ferramentas virtuais. “As pessoas estão acompanhando velórios por vídeos, mandando áudios, lendo cartas de despedida e fazendo orações virtualmente”, afirma.
A dona de casa Claúdia faz parte desse processo. Para encontrar conforto após a morte da tia, ela e seus familiares trocam abraços por ligações e conversas de WhatsApp. “Nós contamos histórias dela, trocamos fotos em que ela aparece e relembramos os últimos momentos que passamos juntos”, conta, emocionando-se ao relembrar da tia como alguém de “coração enorme” e “cheia de vida”.
Esses novos “ritos de conforto” podem não ser o suficiente para a saudade que Cláudia e seus familiares estão sentindo, mas são a única maneira encontrada por eles de “aliviar” o processo de perda. De acordo com Sarah, essa forma recente de luto é uma dor sem “remédio” e os efeitos desses novos rituais de despedida só serão conhecidos no futuro.
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